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A Chegada dos Cristãos. O Refluxo do Islão Espanhol
«(…) Recomeça a vida intelectual. Em Itália, no norte de França, nos mosteiros
e depois nas escolas urbanas, grupos de clérigos estudam os textos que lhes
foram legados pelos seus antecessores, comparam-nos, analisam as suas
divergências, rentam resolvê-las. Têm a impressão de tecer o fio de uma
tradição interrompida, de descobrir e assimilar outra vez uma cultura
esquecida: somos anões empoleirados nos ombros de gigantes, dizia um deles.
Desse saber antigo, as bibliotecas da Europa apenas conservam migalhas. O
ocidente cristão, faminto de livros, é exigente: vai importar dos países que
conservaram a tradição antiga, dos países islâmicos, de Bizâncio, a
matéria-prima indispensável ao seu desenvolvimento intelectual. Para ele, a
Espanha é uma ponte. Já no final do século IX o monge Gerbert viera fazer a sua
aprendizagem das matemáticas a Ripoll, na Catalunha...
Os soberanos cristãos da Espanha procuravam o apoio deste novo dinamismo.
Até meados do século XI, o cristianismo espanhol tinha uma vida autónoma,
praticamente separada do mundo. Aqui ainda reinava o velho rito visigodo e Roma
não contava. Todavia, desde 1063, que o papa concedera indulgências aos que fossem
para Espanha combater os infiéis: vê-se, nesta decisão, o primeiro exemplo de
cruzada. Sancho Ramirez de Aragão respondera a estas medidas. Deslocara-se a
Roma e declarara-se vassalo da Santa Sé (1068); aceitara o ritual romano: era
uma forma de se proteger das ambições da vizinha Navarra e de legitimar a
independência que acabara de adquirir a expensas desta. Os outros
seguiram-se-lhe, rapidamente. Castela jogara a cartada de Cluny, essa grande
abadia da Borgonha cujo peso, na cristandade, era então colossal. Por seu
intermédio, ligara-se à família ducal de Borgonha, que tinha vários membros
fixados em Espanha: um deles estará, aliás, na origem de Portugal e Constança,
a mulher de Afonso VI, era natural da Borgonha. Os cluniacenses haviam criado
mosteiros, fornecido bispos, imposto, em 1080, a passagem ao rito romano. Em
contrapartida, faziam propaganda do caminho de Santiago que atravessava o norte
do reino e cuja expansão tanto prestígio trazia ao rei de Leão; empurravam para
Espanha a multidão dos imigrantes que repovoavam, tal como os moçárabes provenientes
do Sul, as terras conquistadas. A escolha de Bernard Cluny para bispo de Toledo
não tinha nada de surpreendente, nem a proclamação por parte de Roma, alguns
anos mais tarde, da Sé da cidade como arcebispado primaz de Espanha...
1212. Um grande exército reúne-se em Toledo. Primeiro, no início da
Primavera, chegaram os cruzados do Poitu, da Gasconha, da Provença e do
Languedoc, uma turba indisciplinada, sedenta de saque, reunida pela prédica dos
clérigos que, nos últimos anos, percorriam o sul de França. Depois, o rei de
Aragão, Pedro II (1196-1213), e os seus homens; as milícias das cidades de
Castela; os voluntários de Leão e de Portugal, cujos reis não quiseram
acompanhá-los; Sancho VII de Navarra, cognominado o Forte, (1194-1234) e por fim, Afonso VIII de Castela (1158-1214),
o anfitrião de todos eles. Ele reuniu-os para o grande embate, que se pressente
ser decisivo, contra An-Nasir, o Almóada, o rei de Marraquexe. A preparação foi
longa. Foi necessário assinar com Aragão acordos de partilha das eventuais
conquistas: eles dariam a este último, Valência e as Baleares; o resto, a Castela.
Houve que chegar a entendimento com Leão, ainda independente, para obter pelo
menos a sua neutralidade benevolente. O papa teve de insistir e proclamar a
cruzada. Não devemos imaginar uma vaga unânime da Espanha cristã a precipitar-se
sem segundas intenções sobre o infiel. É indubitavelmente mais verosímil do que
em muitas outras ocasiões, mas isso não impede outras reflexões a terra. Apesar
de tudo, o resultado é bem visível: constituiu-se um enorme exército.
Há um século que a frente da Reconquista está bloqueada frente a
Toledo. No entanto, após a tomada da cidade, os castelhanos haviam progredido
rapidamente para sul. Mas os reis dos taifas,
não vendo já saída e pressionados pelos seus súbditos a quem o perigo radicalizava
a fé, haviam decidido pedir ajuda aos Almorávidas, uns fundamentalistas que
tinham acabado de tomar o poder em Marrocos. Estes haviam varrido os taifas, esmagado os exércitos cristãos
em Sagrejas, próximo de Badajoz, em 1086; em Consuegra, em 1097; finalmente, em
Uclés, quase às portas de Toledo, onde morrera o filho do imperador Afonso e de
Zaida. Destronados os Almorávidas, sucederam-lhes os Almóadas, ainda mais
rígidos, ainda mais decididos a repelir o infiel e a salvar al-Andalus. Durante
mais de um século, Toledo fora cercada e os seus campos devastados». In Louis Cardaillac, Tolède, XII-XIII, Éditions
Autrement, Paris, 1991, Toledo XII-XIII, Muçulmanos. Cristãos,
Judeus, O Saber e a Tolerância, Terramar, Lisboa, 1996, ISBN 972-710-144-5.
Cortesia de Terramar/JDACT