terça-feira, 26 de janeiro de 2016

Jaime Cortesão. Crónicas Desaparecidas, Mutiladas e Falseadas. «Quando atento, folheando a Crónica, entra na última parte, chegado aos capítulos 71º e 73º (a obra tem noventa e sete), notará que o cronista dá um balanço à obra do infante Henrique…»

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«(…) Rui de Pina só em 1497, isto é, já no reinado de Manuel I, era investido no cargo de cronista-mor, que Vasco Fernandes Licena, o chanceler-mor do cível, lhe cedia. Todavia, já antes de 1490, ele fora encarregado de escrever os feitos do rei e do reino, por João II. A que vinha esse encargo confiado ao escrivão da câmara, se o ilustre Vasco Lucena, grande doutor in utroque jure, orador e diplomata, figura preeminente da nação, era o cronista-mor? Conforme cremos, a razão está em que nem todos se prestavam à tarefa de extorquir, mutilar ou destruir o alheio labor, defraudando a uns a glória dos feitos e a outros o mérito de os ter perpetuado, ainda que sob a fácil indulgência da razão do Estado. A ilustrar o nosso estudo vai a reprodução duma iluminura com que abre o manuscrito da Crónica de D. Afonso V, feita no começo do século XVI, e desde então guardado no Arquivo Nacional, na qual estão representados, e, segundo os entendidos, com todos os caracteres do retrato, Rui de Pina, o autor da Crónica, e Manuel I, monarca, a quem foi oferecida. Lá se vê, moreno, grisalho e gordo, envolto em rico manto, e farto das benesses que fruía, o cronista, de giolhos (joelhos) em terra aos pés do trono, ofertando ao monarca o seu inglório e minguado epitome. Adiante veremos que outras razões mais nos convencem de seus furtos e emendas, e ao mesmo tempo o inocentam em grande parte deles.

A Crónica da Guiné foi mutilada e truncada
Voltemos agora à Crónica da Guiné. De há muito, e sempre que a líamos, ainda que como livro de consulta e sob alguns dos seus aspectos parciais, ficávamos com a impressão mal definida de que havia através dela, mormente nos últimos capítulos, ou fossem insuficiências de relato, ou desconexões ou soluções de continuidade, que a tornavam abortiva e falha. Suspeitosos de que o cronista soubera mais do que nos dizia na sua Crónica, e impressionados ainda com a estreiteza dos resultados obtidos pelo infante, medidos pela invocação exclamativa do prólogo, donde era lícito supor que o infante Henrique tivera vastos conhecimentos do Oriente, adquiridos pelos seus servidores numa série de viagens por terra, formulámos a hipótese de que o manuscrito de Paris não correspondesse integralmente ao primeiro original. Demo-nos então a uma análise da Crónica, o mais minuciosa e paciente que pudemos, pela única edição impressa, a do visconde de Carreira. Em vez de apesentarmos as nossas conclusões, segundo o processo por que as conseguimos alcançar, vamos seriá-las conforme a ordem lógica e por maneira que as faça ressaltar com maior evidência.
Quando atento, folheando a Crónica, entra na última parte, chegado aos capítulos 71º e 73º (a obra tem noventa e sete), notará que o cronista, sem que nenhum facto até aí relatado o possa explicar, dá um balanço à obra do infante Henrique realizada até ao começo do ano de 1446, sumariando nos dois primeiros alguns informes sobre a geografia física e política do Noroeste de África, visitado por nós, assim como sobre os costumes dos respectivos habitantes, e declarando no seguinte o número de caravelas ali enviadas até aquela data, ou sejam cinquenta e uma e o número de léguas de costas exploradas, que vem a ser quatrocentas e cinquenta». In Jaime Cortesão, A Expansão dos Portugueses no Período Henriquino, Portugália Editora, Lisboa 1965.

Cortesia de PortugáliaE/JDACT