jdact
«(…) Rui de Pina só em 1497, isto é, já no reinado de Manuel
I, era investido no cargo de cronista-mor, que Vasco Fernandes Licena, o
chanceler-mor do cível, lhe cedia. Todavia, já antes de 1490, ele fora
encarregado de escrever os feitos do rei e do reino, por João II. A que vinha
esse encargo confiado ao escrivão da câmara, se o ilustre Vasco Lucena, grande
doutor in utroque jure, orador
e diplomata, figura preeminente da nação, era o cronista-mor? Conforme cremos,
a razão está em que nem todos se prestavam à tarefa de extorquir, mutilar ou
destruir o alheio labor, defraudando a uns a glória dos feitos e a outros o
mérito de os ter perpetuado, ainda que sob a fácil indulgência da razão do
Estado. A ilustrar o nosso estudo vai a reprodução duma iluminura com que abre
o manuscrito da Crónica de D. Afonso V,
feita no começo do século XVI, e desde então guardado no Arquivo Nacional, na
qual estão representados, e, segundo os entendidos, com todos os caracteres do
retrato, Rui de Pina, o autor da Crónica,
e Manuel I, monarca, a quem foi oferecida. Lá se vê, moreno, grisalho e gordo,
envolto em rico manto, e farto das benesses que fruía, o cronista, de giolhos
(joelhos) em terra aos pés do trono, ofertando ao monarca o seu inglório e minguado
epitome. Adiante veremos que outras razões mais nos convencem de seus furtos
e emendas, e ao mesmo tempo o inocentam em grande parte deles.
A Crónica da Guiné foi mutilada e truncada
Voltemos agora à Crónica
da Guiné. De há muito, e sempre que a líamos, ainda que como livro de
consulta e sob alguns dos seus aspectos parciais, ficávamos com a impressão mal
definida de que havia através dela, mormente nos últimos capítulos, ou fossem insuficiências
de relato, ou desconexões ou soluções de continuidade, que a tornavam abortiva
e falha. Suspeitosos de que o cronista soubera mais do que nos dizia na sua Crónica, e impressionados ainda
com a estreiteza dos resultados obtidos pelo infante, medidos pela invocação
exclamativa do prólogo, donde era lícito supor que o infante Henrique tivera
vastos conhecimentos do Oriente, adquiridos pelos seus servidores numa série de
viagens por terra, formulámos a hipótese de que o manuscrito de Paris não
correspondesse integralmente ao primeiro original. Demo-nos então a uma análise
da Crónica, o mais minuciosa e
paciente que pudemos, pela única edição impressa, a do visconde de Carreira. Em
vez de apesentarmos as nossas conclusões, segundo o processo por que as
conseguimos alcançar, vamos seriá-las conforme a ordem lógica e por maneira que
as faça ressaltar com maior evidência.
Quando atento, folheando a Crónica, entra na última parte, chegado aos capítulos 71º e
73º (a obra tem noventa e sete), notará que o cronista, sem que nenhum facto
até aí relatado o possa explicar, dá um balanço à obra do infante Henrique
realizada até ao começo do ano de 1446, sumariando nos dois primeiros alguns
informes sobre a geografia física e política do Noroeste de África, visitado
por nós, assim como sobre os costumes dos respectivos habitantes, e declarando
no seguinte o número de caravelas ali enviadas até aquela data, ou sejam
cinquenta e uma e o número de léguas de costas exploradas, que vem a ser
quatrocentas e cinquenta». In Jaime Cortesão, A Expansão
dos Portugueses no Período Henriquino, Portugália Editora, Lisboa 1965.
Cortesia de PortugáliaE/JDACT