Cortesia
de wikipedia
Ode Marítima
«Sozinho,
no cais deserto, a esta manhã de Verão,
olho
pró lado da barra, olho pró Indefinido,
olho
e contenta-me ver,
pequeno,
negro e claro, um paquete entrando.
Vem muito
longe, nítido, clássico à sua maneira.
Deixa
no ar distante atrás de si a orla vã do seu fumo.
Vem
entrando, e a manhã entra com ele, e no rio,
aqui,
acolá, acorda a vida marítima,
erguem-se
velas, avançam rebocadores,
surgem
barcos pequenos de trás dos navios que estão no porto.
Há
uma vaga brisa.
Mas a
minh’alma está com o que vejo menos,
com o
paquete que entra,
porque
ele está com a Distância, com a Manhã,
com
o sentido marítimo desta Hora,
com a
doçura dolorosa que sobe em mim como uma náusea,
como
um começar a enjoar, mas no espírito.
Olho
de longe o paquete, com uma grande independência de alma,
e dentro
de mim um volante começa a girar, lentamente.
Os paquetes
que entram de manhã na barra
Trazem
aos meus olhos consigo
O mistério
alegre e triste de quem chega e parte.
trazem
memórias de cais afastados e doutros momentos
doutro
modo da mesma humanidade noutros pontos.
Todo
o atracar, todo o largar de navio,
É, sinto-o
em mim como o meu sangue
inconscientemente
simbolico. terrivelmente
ameaçador
de significações metafísicas
que perturbam
em mim quem eu fui...
Ah, todo
o cais é uma saudade de pedra!
E quando
o navio larga do cais
e se
repara de repente que se abriu um espaço
entre
o cais e o navio,
vem-me,
não sei porquê, uma angústia recente,
uma
névoa de sentimentos de tristeza
que brilha
ao sol das minhas angústias relvadas
como
a primeira janela onde a madrugada bate,
e me
envolve como uma recordação duma outra pessoa
que fosse
misteriosamente minha.
Ah, quem
sabe, quem sabe,
se não
parti outrora, antes de mim,
dum
cais; se não deixei, navio ao sol
oblíquo
da madrugada,
uma
outra espécie de porto?
Quem
sabe se não deixei, antes de a hora,
do mundo
exterior como eu o vejo
raiar-se
para mim,
um grande
cais cheio de pouca gente,
duma
grande cidade meio-desperta,
duma
enorme cidade comercial, crescida, apopléctica,
tanto
quanto isso pode ser feito fora do Espaço e do Tempo?»
[…]
Poema
de Fernando Pessoa/Álvaro de Campos, in ‘Ode
Marítima’
ISBN
972-889-278-0
JDACT