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A
inquisição (maldita) e os meandros da espionagem. 1321
«(…) Várias vezes, respondi. E era
verdade: os espíritos malignos são um assunto da preferência dos sacerdotes
cátaros, que também são conhecidos como Bons Homens, ou perfecti, devido ao facto de não comerem carne, usarem
roupas modestas e levarem uma vida casta, que eles descrevem como aperfeiçoada.
Pedro Autier diz que o ar está repleto de espíritos malignos e que eles queimam
os espíritos benignos, continuou Armand, com os seus modos lentos. E é por isso
que, quando abandona um corpo já morto, o espírito benigno fica ansioso por
encontrar outro corpo carnal para habitar. Porém os espíritos malignos não o conseguem
queimar ou atormentar ali. Sim, sim, disse eu, bocejando. Aonde queres chegar? Bem...,
e se o tempo estiver muito frio, como hoje? Se os bons espíritos podem arder,
poderão eles também congelar? Já estava habituado a que Armand formulasse tais
questões. E tinha o juízo necessário para não me rir ou troçar dele. Abstive-me
de salientar que as mentiras dos Bons Homens o fariam algum dia ser morto. Tudo
o que lhe disse foi: da próxima vez que vires Pedro Autier, questiona-o acerca
dos espíritos benignos. E soprei sobre os meus dedos, que mais pareciam dez
sincelos, desprovidos de cor ou sensibilidade.
Penso que Armand nunca mais voltou
a ver Pedro Autier. Na manhã seguinte, ele partiu para Villemur para encontrar
o seu primo (que era igualmente um fugitivo perfectus)
e eu dirigi-me para sul, em busca de Pedro Autier. Naquele ano, era ele o meu
objecto de perseguição e não humildes crentes como Armand Sanche. Face à baleia
que era Pedro, Armand era apenes um peixinho, e, ta1 como um peixe de pequena
dimensão, ele poderia ter escapado pela rede. Não sei. Ainda que tenha
perseguido o astuto Pedro até Relpech e o tenha praticamente entregado às mãos
do meu senhor, encontrava-me eu a viajar na direcção das montanhas naquele
Verão quando ele encontrou finalmente o seu fim. Pedro foi queimado, eu sei. Mas,
no que diz respeito ao destino dos seus muitos protectores e seguidores, eu
nada sabia. O que sei é que Armand Sanche tinha vindo para Narbonne. Tinha
vindo para aqui e não queria ser encontrado. Ainda bem, porque eu também não
desejava ser encontrado; ele deve julgar-me um fugitivo, tal como ele mesmo.
Ele entregaria o meu nome ao arcebispo tanto quanto eu entregaria o dele. Por
isso, nada tenho a temer relativamente às suas intenções.
Lamentavelmente, contudo, tenho
tudo a temer quanto à sua falta de perspicácia. Independentemente do que quer
que ele tenha feito para voltar a conquistar (ou manter) a sua liberdade, tenho
a certeza de que esta não continuará a ser a sua condição por muito mais tempo.
Um dia ele será apanhado e, nessa altura, irá confessar e o meu próprio nome
virá à superfície durante o seu interrogatório. Como não? Então, o meu disfarce
tão cuidadosamente elaborado poderá ser destruído e, se as mãos que o fizerem
forem desastradas o bastante, os meus planos poderão ser arruinados. Posso ter
de sair daqui, antes que atraia atenções indesejadas. É por este motivo que
devo tomar nota de qualquer estranho que surja na rua, assim como de qualquer
pedido anormal ou acontecimento fora do comum que eu possa encontrar daqui em diante.
Porque a minha memória já não é o que era e posso ter de me referir ao passado
algures no futuro. Tenho de começar novamente a fazer o levantamento das lentas
e pequenas formas que se desenham perante mim.
Acabei de voltar da Torre do
Capitólio, onde passei a última noite na prisão arquiepiscopal. Parece que os
meus piores medos se concretizaram. Aquele tolo do Armand Sanche tem andado a
abrir a boca ao inquisidor de Carcassone. E agora quem tem de pagar pela sua
estupidez sou eu. Quando a intimação chegou, eu estava no andar de baixo a retirar
com uma vara as peles de cabra que estavam mergulhadas no tanque maior. Por
isso, consegui ouvir o meu aprendiz atender à porta e vi, naquele preciso
momento, que estava em sarilhos. Nunca tinha recebido a visita de qualquer
padre de São Sebastião, apesar de me confessar três vezes por ano. As minhas
esmolas não são suficientemente generosas para merecer tal condescendência». In
Catherine Jinks, O Oficial Secreto, Confissões de um espião do inquisidor,
2006, tradução de Tiago Marques, Bertrand Editora, Lisboa, 2007, ISBN
978-972-251-609-9.
Cortesia de BertrandE/JDACT