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O
amigo da rainha
«(…)
Por isso, no desespero em que mergulhara com os avisos da Coroa sobre o noivado
que estaria iminente, Antónia ousara pedir o impossível. No início de Julho de 1509, escrevera ao amigo e pedira-lhe
que viesse vê-la a Moura. O Melo comparecera rapidamente, e tinham conversado num
olival da vila, nua posição onde se via o maravilhoso ondulado alentejano. Como
está vosso coração, meu amigo? Está morto, Antónia. Não digas isso, Vasco. Ele
bate, mantém-me vivo, mas nunca mais amará outra mulher. Amaste muito Iamê. Sonhei
com ela anos a fio. De repente apareceu-me saída do arvoredo e logo nos
apaixonámos. Deixou os seus e atravessou o oceano por min-r, deu-me um filho e
morreu. Tens de a esquecer. Por favor, Antoninha, não me dês um sermão. Já me chegam
os de Miguel e do próprio senhor dom Manuel. Nunca mais me ajuntei com mulher e
não me quero casar de novo. Ficaram em silêncio, olhrares perdidos. Vasco confirmara
o que já confidenciara a Antónia noutra ocasião, e ela ganhara ânimo. Afinal,
porque me chamaste? Tenho um pedido a fazer ao meu melhor amigo. Só tu me podes
valer. Curioso, Vasco arqueou as sobrancelhas e deu um estalo com a língua.
Casa comigo. O nariz de Vasco parou subitamente. Antónia, gosto de ti, mas não
tenho vontade, e mereces homem que te ame. Já o tenho, mas só posso ser dele
para sempre através de ti. E Antónia explicara-lhe seu drama. Pedia a Vasco que
casasse com ela e aceitasse Álvaro Pires como seu feitor. Assim, a sociedade
deixava ambos em paz e ela podia viver seu amor discretamente. A boda teve
lugar passados seis meses, e Vasco cumpriu tranquilamente seu papel para
felicidade dos amantes. E como Antónia nunca emprenhou, Pedro, o filho de Vasco
e de Iamê, tornou-se herdeiro do morgadio.
Há muito que Antónia não se lembrava
da pobre rainha dona Joana. Raramente se falava nessa mulher que fora enterrada
viva para proveito de seus parentes. Mas a referência do sacristão tivera como
efeito imediato a lembrança de Vasco, e seu espírito. nada pôde fazer para
evitar que as imagens e sons de Vasco Melo. que permaneciam depositados no seu
íntimo, se soltassem de sua câmara habitual e lhe preenchessem o espírito. Se a
memória de Álvaro lhe trazia ao espírito a paixão, os prazeres carnais e a cumplicidade
do amor, ao recordar Vasco ela era invadida pela afeição e pela ternura. Com
Vasco em sua cabeça, não valia a pena ir à igreja. Com idade tão avançada, dona
Antónia, aprendera que quando alguém do passado a visitava havia que ser
hospitaleira. E valia a pena viver o bom Vasco Melo.
Em sua câmara, dona Antónia abriu
uma arca grande e retirou uma caixa que estava dentro dela. Pegou numa folha de
papel enrolada e abriu-a. Era o retrato de Vasco desenhado a carvão por Miguel Castro.
Dera-lho no dia do funeral de Vasco, quando o Melo fora sepultado naquela mesma
vila. Fora um dia triste de Setembro de 1515,
que ela era incapaz de precisar; lembrava-se apenas que fora nos dias subsequentes
ao desastre da Mamora, em que Vasco se finara deste mundo, não de espada na
mão, como merecia vida tão honrada, mas por fraqueza de seu coração que não
resistiu à visão da destruição da Armada Real e da terrível mortandade que as
forças portuguesas sofreram às mãos dos mouros». In João Paulo Oliveira Costa,
Círculo de Leitores, Temas e Debates, 2012, 978-989-644-184-5.
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