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A Fundação. Arquimaes, o sábio dos sábios
«(…) Os soldados, ao verem a
audácia do seu senhor, decidiram obedecer à ordem e obrigaram os criados a
colocar todos os pertences dentro das carroças. Em pouco tempo, o laboratório
ficou quase vazio e todos os livros e pergaminhos que o alquimista havia
preenchido com toda a paciência ao longo de vários meses ficaram em poder do
conde. As fórmulas de medicamentos e outras descobertas acabavam de passar para
mãos ambiciosas. Pela primeira vez, o alquimista temeu o que Morfidio pudesse
fazer com a fórmula secreta e um calafrio percorreu todo o seu corpo. Só de
pensar que tai coisa pudesse acontecer, fazia-o estremecer. Matai estes homens!
Não quero testemunhas! Vociferou Morfidio, ao mesmo tempo que trespassava o
corpo de um criado com a sua longa espada. E atirai os seus corpos ao rio! Os
soldados lançaram-se sobre os outros dois ajudantes, que nem sequer ofereceram
qualquer resistência, trespassaram-nos com as suas armas aguçadas e acabaram
com as suas vidas em poucos segundos. Aterrorizado, o servidor mais idoso
tentou fugir pelas escadas abaixo, até ao exterior, mas Cromell partiu em sua
perseguição, dando gritos e soltando ameaças e imprecações. Voltou alguns
segundos depois, com a lâmina da espada manchada de sangue. Tinha isto entre as
roupas, explicou ao seu senhor. É um pergaminho. Morfidio desdobrou o documento
e observou-o com atenção. Ora vejamos, agora temos outra prova a nosso favor! Quatro
soldados obrigaram o sábio e o seu ajudante ferido com gravidade a subirem para
uma carroça. Trataram-nos com dureza, esquecendo-se de que se tratava de um
homem de paz afligido pela violenta situação que acabava de sofrer e de um
jovem ferido com bastante gravidade que pusera a sua vida em perigo por ajudar
o seu mestre. Os guerreiros eram dignos servidores de um amo selvático e cruel
que não se detinha diante de nenhum obstáculo para conseguir os seus desejos.
As ratazanas e os cães fizeram bem em afastar-se do seu caminho.
Voltemos ao castelo. É de noite e
estas terras são perigosas na escuridão!, ordenou o conde Morfidio, prestando
atenção aos uivos selvagens que chegavam aos seus ouvidos a partir das trevas. Já
não temos mais nada que fazer aqui... Queimai este lugar! Não quero que fique
nem rasto deste infecto santuário de bruxaria! Arquimaes observou como vários
homens, comandados pelo capitão Cromell, cumpriam a ordem e ateavam fogo ao
laboratório que tanto esforço lhe havia custado a erguer. Viu como todo o seu
trabalho era pasto das chamas e se transformava em fumo diante dos seus olhos.
A indignação pelo assalto e pela matança que acabavam de sofrer remeteu-o ao
mais absoluto silêncio, ao mesmo tempo que o desespero e a raiva iam crescendo no
seu interior. O sábio abraçou-se a Arturo e pressionou a sua ferida com força,
mas não pôde evitar que umas lágrimas assomassem aos seus olhos quando os soldados
arremessaram os corpos dos seus ajudantes ao rio. Depois, a caravana pôs-se em
marcha em direcção ao castelo de Morfidio, deixando atrás de si uma coluna de
fumo que se elevava até ao céu e se confundia com as nuvens que o encobriam.
Nenhuma das janelas das casas
vizinhas se abrira, ninguém saíra para a rua acorrendo em seu auxílio e a
povoação encontrava-se mergulhada na mais absoluta escuridão, como se estivesse
de luto. Ninguém se atreveu a enfrentar o conde Morfidio para defender o
alquimista que, em mais de uma ocasião, já havia salvado a vida de muitos
doentes ou feridos. Enquanto a caravana se afastava, um homem de pequena
estatura, olhos salientes e grandes orelhas, que havia permanecido oculto por entre
a espessura do bosque circundante e que havia observado a cena com atenção,
montou no seu cavalo e dirigiu-se rumo ao castelo do rei Benicius. O conde
Morfidio não imaginava que a sua infâmia iria desencadear uma série de
terríveis acontecimentos que mudariam a história e criariam uma extraordinária
lenda.
O louco dos livros
Cada vez que acordo de manhã,
depois de dormir profundamente, repito a mesma frase em voz alta para saber
onde estou. Os meus sonhos são tão intensos que me custa acordar e tenho
problemas em situar-me na realidade, na minha verdadeira realidade. Esta noite
tive outra vez um sonho repleto de aventuras extraordinárias, com soldados,
castelos medievais, magos, alquimistas... O mais preocupante é que sofro estas
alucinações com tanta força que me levanto esgotado, como se as tivesse vivido
de verdade. É terrível..., não sei o que posso fazer para evitá-las. Às vezes,
julgo que estou a ficar louco. Talvez isso aconteça porque quando uma pessoa
está a ponto de completar catorze anos tem paranóias que não consegue
controlar. Enquanto mantenho uma dura batalha com as minhas recordações
fantásticas, entro no duche, abro a torneira e espero que a água tépida me
ajude a sair do mundo da ficção e a entrar na realidade. A água ajuda-me a
passar da Idade Média para a actualidade». In Santiago Garcia Clairac, O Reino dos
Sonhos, O Exército Negro, 2006, tradução de Ana Maria Silva, Planeta
Manuscritos, Lisboa, 2009, ISBN 978-989-657-020-0.
Cortesia de PlanetaM/JDACT