terça-feira, 12 de janeiro de 2016

Margarida e o Mestre Mikhail Bulgákov. «Depois de beberem, os literatos imediatamente começaram a soluçar, pagaram e sentaram-se no banco, de frente para o lago e de costas para a Bronnaia…»

Cortesia de wikipedia e jdact

«… quem és, afinal? Sou parte da força que eternamente deseja o mal e eternamente faz o bem». In Goeth, Fausto.

Nunca falem com estranhos
«Na hora de um quente pôr do sol primaveril, surgiram dois cidadãos em Patriarchi Prudý. O primeiro, com aproximadamente quarenta anos, trajava um costume cinza de verão, era de estatura baixa, cabelos escuros, rechonchudo, careca, na mão o seu respeitável chapéu Fedora. Óculos de tamanho sobrenatural de armação preta de chifre ornavam o seu rosto cuidadosamente escanhoado. O segundo era um jovem de ombros largos, arruivado, hirsuto, com um boné xadrez caído na nuca, camisa de cow boy, calças brancas amarrotadas e ténis pretos. O primeiro era nada mais nada menos que Mikhail Aleksándrovitch Berlioz, editor de uma volumosa revista de arte e presidente do conselho administrativo de uma das maiores associações literárias de Moscovo, abreviadamente denominada Massolit. Já o jovem acompanhante era o poeta Ivan Nikoláievitch Ponyriov, que escrevia sob o pseudónimo de Bezdomny. Assim que entraram na sombra das tílias verdejantes, os escritores precipitaram-se para um quiosque multicolorido com a placa Cerveja e Refrescos. Sim, convém destacar a primeira esquisitice desse terrível entardecer de Maio. Não só perto do quiosque, mas também em toda a área paralela à rua Málaia Bronnaia, não havia vivalma. Naquela hora, quando não se tinha forças nem para respirar, quando o sol, após aquecer Moscovo, mergulhava numa neblina seca nenhum lugar de Sadovoie Koltso, ninguém viera para a sombra das tílias, ninguém se sentara no banco, a área estava vazia. Uma água com gás, pediu Berlioz. Não tenho, respondeu a mulher do quiosque, e sabe-se lá porque se ofendeu. Tem cerveja?, quis saber Bezdomny, com a voz rouca. Vão-me trazer mais tarde, respondeu a mulher. Então tem o quê?, perguntou Berlioz. Refresco de damasco, e quente, disse a mulher. Então…, pode ser, pode ser!... O refresco de damasco formou uma espuma densa e amarela, surgiu no ar um cheiro de cabeleireiro. Depois de beberem, os literatos imediatamente começaram a soluçar, pagaram e sentaram-se no banco, de frente para o lago e de costas para a Bronnaia. Nesse momento, ocorreu a segunda esquisitice, que só tinha a ver com Berlioz. Ele parou de soluçar repentinamente, o seu coração bateu e, num rufo, sentiu como se tivesse partido para algum lugar e depois voltado, mas com uma agulha cega cravada nele. Além disso, Berlioz foi tomado por um medo infundado, mas tão forte, que teve vontade de sair correndo imediatamente de Patriarchi, sem olhar para trás. Berlioz olhou em volta angustiado, sem entender o que o assustara tanto. Empalideceu, enxugou a testa com um lenço e pensou: o que está acontecendo comigo? Nunca senti isso..., o coração está falhando..., estou esgotado..., acho que está na hora de mandar tudo para o inferno e ir para Kislovodsk...
Na mesma hora, o ar tórrido condensou-se diante dele e desse ar surgiu um cidadão transparente, de aspecto estranhíssimo. Na pequena cabeça, um boné de jóquei, um casaco xadrez apertado e também vaporoso... Um cidadão de estatura colossal, mas de ombros estreitos, incrivelmente magro e de fisionomia, quero destacar, zombeteira. A vida de Berlioz transcorria de tal modo que ele não estava acostumado a fenómenos extraordinários. Empalidecendo ainda mais, ele esbugalhou os olhos e pensou, confuso: isto não pode ser real! Mas infelizmente era real, e através daquilo via-se um cidadão alongado e transparente, que balançava diante dele, ora para a esquerda ora para a direita, sem tocar no chão. Nesse instante, o pavor tomou conta de Berlioz de tal forma que fechou os olhos. Quando os abriu, viu que tudo tinha acabado, a miragem evaporara, o xadrêz desaparecera e, a propósito, a agulha cega desprendera-se de seu coração. Que…, diabo!, exclamou o editor. Sabe, Ivan, quase tive um ataque cardíaco por causa do calor! Tive até mesmo um tipo de alucinação..., tentou sorrir, mas a aflição ainda lhe saltava aos olhos e as mãos tremiam. Acalmou-se aos poucos, abanou-se com o lenço e pronunciou bastante animado: bem, então..., retomou a conversa interrompida pelo refresco de damasco». In Mikhail Bulgákov, Margarida e o Mestre, 2003, Editora Objectiva, tradução de Zoia Prestes, 2011, ISBN 978-857-962-054-6.

Cortesia EObjectiva/JDACT