Cortesia
de wikipedia e jdact
«…
quem és, afinal? Sou parte da força que eternamente deseja o mal e eternamente
faz o bem». In Goeth, Fausto.
Nunca
falem com estranhos
«Na
hora de um quente pôr do sol primaveril, surgiram dois cidadãos em Patriarchi
Prudý. O primeiro, com aproximadamente quarenta anos, trajava um costume cinza
de verão, era de estatura baixa, cabelos escuros, rechonchudo, careca, na mão o
seu respeitável chapéu Fedora. Óculos de tamanho sobrenatural de armação preta
de chifre ornavam o seu rosto cuidadosamente escanhoado. O segundo era um jovem
de ombros largos, arruivado, hirsuto, com um boné xadrez caído na nuca, camisa
de cow boy, calças brancas
amarrotadas e ténis pretos. O primeiro era nada mais nada menos que Mikhail
Aleksándrovitch Berlioz, editor de uma volumosa revista de arte e presidente do
conselho administrativo de uma das maiores associações literárias de Moscovo,
abreviadamente denominada Massolit. Já o jovem acompanhante era o poeta Ivan
Nikoláievitch Ponyriov, que escrevia sob o pseudónimo de Bezdomny. Assim que
entraram na sombra das tílias verdejantes, os escritores precipitaram-se para um
quiosque multicolorido com a placa Cerveja e Refrescos. Sim, convém
destacar a primeira esquisitice desse terrível entardecer de Maio. Não só perto
do quiosque, mas também em toda a área paralela à rua Málaia Bronnaia, não
havia vivalma. Naquela hora, quando não se tinha forças nem para respirar,
quando o sol, após aquecer Moscovo, mergulhava numa neblina seca nenhum lugar
de Sadovoie Koltso, ninguém viera para a sombra das tílias, ninguém se sentara
no banco, a área estava vazia. Uma água com gás, pediu Berlioz. Não tenho, respondeu
a mulher do quiosque, e sabe-se lá porque se ofendeu. Tem cerveja?, quis saber
Bezdomny, com a voz rouca. Vão-me trazer mais tarde, respondeu a mulher. Então
tem o quê?, perguntou Berlioz. Refresco de damasco, e quente, disse a mulher. Então…,
pode ser, pode ser!... O refresco de damasco formou uma espuma densa e amarela,
surgiu no ar um cheiro de cabeleireiro. Depois de beberem, os literatos
imediatamente começaram a soluçar, pagaram e sentaram-se no banco, de frente para
o lago e de costas para a Bronnaia. Nesse momento, ocorreu a segunda
esquisitice, que só tinha a ver com Berlioz. Ele parou de soluçar
repentinamente, o seu coração bateu e, num rufo, sentiu como se tivesse partido
para algum lugar e depois voltado, mas com uma agulha cega cravada nele. Além
disso, Berlioz foi tomado por um medo infundado, mas tão forte, que teve
vontade de sair correndo imediatamente de Patriarchi, sem olhar para trás. Berlioz
olhou em volta angustiado, sem entender o que o assustara tanto. Empalideceu, enxugou
a testa com um lenço e pensou: o que está acontecendo comigo? Nunca senti
isso..., o coração está falhando..., estou esgotado..., acho que está na hora
de mandar tudo para o inferno e ir para Kislovodsk...
Na
mesma hora, o ar tórrido condensou-se diante dele e desse ar surgiu um cidadão transparente,
de aspecto estranhíssimo. Na pequena cabeça, um boné de jóquei, um casaco
xadrez apertado e também vaporoso... Um cidadão de estatura colossal, mas de
ombros estreitos, incrivelmente magro e de fisionomia, quero destacar,
zombeteira. A vida de Berlioz transcorria de tal modo que ele não estava
acostumado a fenómenos extraordinários. Empalidecendo ainda mais, ele esbugalhou
os olhos e pensou, confuso: isto não pode ser real! Mas infelizmente era
real, e através daquilo via-se um cidadão alongado e transparente, que
balançava diante dele, ora para a esquerda ora para a direita, sem tocar no
chão. Nesse instante, o pavor tomou conta de Berlioz de tal forma que fechou os
olhos. Quando os abriu, viu que tudo tinha acabado, a miragem evaporara, o
xadrêz desaparecera e, a propósito, a agulha cega desprendera-se de seu
coração. Que…, diabo!, exclamou o editor. Sabe, Ivan, quase tive um ataque
cardíaco por causa do calor! Tive até mesmo um tipo de alucinação..., tentou
sorrir, mas a aflição ainda lhe saltava aos olhos e as mãos tremiam. Acalmou-se
aos poucos, abanou-se com o lenço e pronunciou bastante animado: bem, então...,
retomou a conversa interrompida pelo refresco de damasco». In Mikhail Bulgákov, Margarida e
o Mestre, 2003, Editora Objectiva, tradução de Zoia Prestes, 2011, ISBN
978-857-962-054-6.
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