terça-feira, 19 de janeiro de 2016

Pão sobre as Águas. Irwin Shaw. «De manhã o tempo estivera ventoso e cinzento e ele pensara que a tarde deveria estar boa para se meter num autocarro, ir até ao Museu de Arte Moderna, de que era sócio, uma das suas poucas extravagâncias»

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«Estava numa cama estranha. Murmuravam em seu redor. Uma impressão de branco. Maquinaria. O som do quebrar distante do mar contra a costa. Ou talvez a rebentação líquida do seu sangue a pulsar contra paredes interiores. Flutuava..., algures. Tinha dificuldade em abrir os olhos, as pálpebras pesavam-lhe. Um homem caminhava ao sol primaveril. Tinha a impressão de que iá vira aquele homem. Por fim, compreendeu que era ele próprio... Com um vestuário largo e a destoar entre si, Allen Strand caminhava no silêncio verde e fragrante do Central Park, enquanto o barulho da 5.ª Avenida ia diminuindo atrás dele. Caminhava devagar, com o seu passo de fim-de-semana. Nos dias de trabalho trotava, com o corpo alto e magro, coroado por uma cabeça comprida e estreita em que o nariz bicudo, hereditário, era um gurupés, inclinado, batido por um vento oceânico particular. A asa do seu cabelo escorrido e grisalho brilhava ao compasso do movimento marítimo de sobe-e-desce da sua passada. A sua filha Eleanor, depois de o encontrar uma vez casualmente na rua, dissera que quase esperara ver formar-se uma onda de proa à sua frente, enquanto ele vogava através das correntes do trânsito urbano. A ideia de que nessa noite veria Eleanor agradou-lhe. Tinha um olhar penetrante e uma língua contundente e as suas observações nem sempre eram agradáveis, mas o cintilar de armas que ela levava para a mesa do jantar da família fazia-o aguardar com expectativa e interesse, enquanto seguia ao longo do caminho ladeado de bancos, o que, não fora isso, talvez não passasse de um ritual, de uma obrigação semanal.
De manhã o tempo estivera ventoso e cinzento e ele pensara que a tarde deveria estar boa para se meter num autocarro, ir até ao Museu de Arte Moderna, de que era sócio, uma das suas poucas extravagâncias, e ver um filme antes do jantar. Nessa tarde passavam Forte Apache, uma deliciosa narrativa de um mito americano ingénuo e heróico, um antídoto para a dúvida. Já o vira diversas vezes, mas estava preso a ele como uma criança que insiste em ouvir ler todas as noites a mesma história, antes de adormecer. O vento, porém, abrandara ao meio-dia, o céu limpara e ele resolvera trocar o filme por um dos seus passeios favoritos: vários quilómetros para oeste, na direcção de casa, a partir da escola secundária onde ensinava. Aquela sexta-feira estava tépida e estival, era um presente de Maio com a fragrância de regiões mais simples, e ás folhas das árvores apresentavam um tom de lima-pálido ao sol do fim da tarde. Foi andando sem pressa, parou a rir-se de um cão-d’água que corria valentemente atrás de um pombo, viu rapazes a jogar à vez com uma bola macia e admirou um jovem perfeito e a sua bonita pequena sorrindo sonhadora e conspirativamente, com os rostos luminosos da promessa de sensualidade do fim-de-semana, a aproximarem-se pelo caminho alheios à sua presença. A carne de Maio, pensou. Louvado fosse Deus pela Primavera e pela sexta-feira. Era um cristão indiferente, mas a tarde inspirava gratidão e fé.
Estava livre de trabalho. corrigira os exercícios da semana, as consequências da Guerra Civil-e deixara o Appomattox e a Reconstrução na secretária. Durante dois dias as crianças que ensinara e classificara deixavam de ser responsabilidade sua; naquele momento gritavam a assistir a jogos em recintos desportivos, ou entregavam-se a experiências sexuais nos telhados dos prédios onde moravam, ou, escondidas em corredores, fumavam marijuana ou enchiam-seringas com a heroína comprada, dizia-se, ao homem gordo, de boné de basebol, que estacionava regularmente à esquina de uma rua, perto da escola. Como tinha as mãos livres, Strand inclinou-se e apanhou uma pequena pedra redonda que transportou consigo durante momentos, ligado a glaciares e saboreando o contacto da superfície lisa, curva e resistente, aquecida pelo sol do dia. Naquela noite jantariam tarde, com toda a família reunida, e ele desviou-se um pouco do caminho a fim de passar pelos courts de ténis do parque, onde sabia que a sua filha mais nova, Carolina, estaria a jogar. Carolina era uma atleta devotada. Para ela não havia marijuana nem heroína, pensou complacente, generosamente compadecido dos pais menos afortunados. O tempo agradável, de férias, inspirava generosidade e complacência. Mesmo de longe, reconheceu Carolina pelos seus movimentos. Tinha um estilo elástico e determinado de correr para a bola e um maneirismo quase arrapazado de passar os dedos pelo cabelo curto e louro, entre pontos. O jovem com quem jogava parecia frágil comparado com ela que, apesar de magra, era alta para a idade, cheia de peito e com ombros largos e pernas compridas e bem torneadas, pernas que os breves calções de ténis tornavam admiravelmente públicas e que Strand notou estarem a ser apreciadas pelos transeuntes do sexo masculino». In Irwin Shaw, Pão sobre as Águas, 1981, tradução de Fernanda Rodrigues, Editora Livros do Brasil, Colecção Dois Mundos, Lisboa, 1984, ISBN 972-380-780-6.

Cortesia de ELBrasil/JDACT