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«Estava
numa cama estranha. Murmuravam em seu redor. Uma impressão de branco. Maquinaria.
O som do quebrar distante do mar contra a costa. Ou talvez a rebentação líquida
do seu sangue a pulsar contra paredes interiores. Flutuava..., algures. Tinha dificuldade
em abrir os olhos, as pálpebras pesavam-lhe. Um homem caminhava ao sol primaveril.
Tinha a impressão de que iá vira aquele homem. Por fim, compreendeu que era ele
próprio... Com um vestuário largo e a destoar entre si, Allen Strand caminhava no
silêncio verde e fragrante do Central Park, enquanto o barulho da 5.ª Avenida ia
diminuindo atrás dele. Caminhava devagar, com o seu passo de fim-de-semana. Nos
dias de trabalho trotava, com o corpo alto e magro, coroado por uma cabeça
comprida e estreita em que o nariz bicudo, hereditário, era um gurupés,
inclinado, batido por um vento oceânico particular. A asa do seu cabelo
escorrido e grisalho brilhava ao compasso do movimento marítimo de sobe-e-desce
da sua passada. A sua filha Eleanor, depois de o encontrar uma vez casualmente na
rua, dissera que quase esperara ver formar-se uma onda de proa à sua frente, enquanto
ele vogava através das correntes do trânsito urbano. A ideia de que nessa noite
veria Eleanor agradou-lhe. Tinha um olhar penetrante e uma língua contundente e
as suas observações nem sempre eram agradáveis, mas o cintilar de armas que ela
levava para a mesa do jantar da família fazia-o aguardar com expectativa e interesse,
enquanto seguia ao longo do caminho ladeado de bancos, o que, não fora isso,
talvez não passasse de um ritual, de uma obrigação semanal.
De manhã
o tempo estivera ventoso e cinzento e ele pensara que a tarde deveria estar boa
para se meter num autocarro, ir até ao Museu de Arte Moderna, de que era sócio,
uma das suas poucas extravagâncias, e ver um filme antes do jantar. Nessa tarde
passavam Forte Apache, uma deliciosa narrativa de um mito americano
ingénuo e heróico, um antídoto para a dúvida. Já o vira diversas vezes, mas
estava preso a ele como uma criança que insiste em ouvir ler todas as noites a mesma
história, antes de adormecer. O vento, porém, abrandara ao meio-dia, o céu limpara
e ele resolvera trocar o filme por um dos seus passeios favoritos: vários
quilómetros para oeste, na direcção de casa, a partir da escola secundária onde
ensinava. Aquela sexta-feira estava tépida e estival, era um presente de Maio com
a fragrância de regiões mais simples, e ás folhas das árvores apresentavam um tom
de lima-pálido ao sol do fim da tarde. Foi andando sem pressa, parou a rir-se de
um cão-d’água que corria valentemente atrás de um pombo, viu rapazes a jogar à vez
com uma bola macia e admirou um jovem perfeito e a sua bonita pequena sorrindo sonhadora
e conspirativamente, com os rostos luminosos da promessa de sensualidade do fim-de-semana,
a aproximarem-se pelo caminho alheios à sua presença. A carne de Maio, pensou. Louvado
fosse Deus pela Primavera e pela sexta-feira. Era um cristão indiferente, mas a
tarde inspirava gratidão e fé.
Estava
livre de trabalho. corrigira os exercícios da semana, as consequências da Guerra
Civil-e deixara o Appomattox e a Reconstrução na secretária. Durante dois dias as
crianças que ensinara e classificara deixavam de ser responsabilidade sua; naquele
momento gritavam a assistir a jogos em recintos desportivos, ou entregavam-se a
experiências sexuais nos telhados dos prédios onde moravam, ou, escondidas em
corredores, fumavam marijuana ou enchiam-seringas com a heroína
comprada, dizia-se, ao homem gordo, de boné de basebol, que estacionava regularmente
à esquina de uma rua, perto da escola. Como tinha as mãos livres, Strand inclinou-se
e apanhou uma pequena pedra redonda que transportou consigo durante momentos, ligado
a glaciares e saboreando o contacto da superfície lisa, curva e resistente, aquecida
pelo sol do dia. Naquela noite jantariam tarde, com toda a família reunida, e ele
desviou-se um pouco do caminho a fim de passar pelos courts de ténis do parque,
onde sabia que a sua filha mais nova, Carolina, estaria a jogar. Carolina era
uma atleta devotada. Para ela não havia marijuana nem heroína, pensou complacente,
generosamente compadecido dos pais menos afortunados. O tempo agradável, de férias,
inspirava generosidade e complacência. Mesmo de longe, reconheceu Carolina pelos
seus movimentos. Tinha um estilo elástico e determinado de correr para a bola e
um maneirismo quase arrapazado de passar os dedos pelo cabelo curto e louro, entre
pontos. O jovem com quem jogava parecia frágil comparado com ela que, apesar de
magra, era alta para a idade, cheia de peito e com ombros largos e pernas
compridas e bem torneadas, pernas que os breves calções de ténis tornavam
admiravelmente públicas e que Strand notou estarem a ser apreciadas pelos transeuntes
do sexo masculino». In Irwin Shaw, Pão sobre as Águas, 1981, tradução de Fernanda
Rodrigues, Editora Livros do Brasil, Colecção Dois Mundos, Lisboa, 1984, ISBN
972-380-780-6.
Cortesia
de ELBrasil/JDACT