sexta-feira, 8 de janeiro de 2016

Baudolino. Umberto Eco. «Que loucura esperar piedade daqueles bárbaros, que não precisavam que o inimigo se rendesse para fazer o que sonhavam há meses: destruir a cidade mais ampla, mais povoada, mais rica, mais nobre do mundo…»

 jdact e wikipedia


Baudolino encontra Nicetas Coniates
«(…) Nicetas e Baudolino estavam sentados frente a frente, no aposento de uma pequena torre, com bíforas que se abriam para três lados. Uma delas mostrava o Corno de Ouro e a margem oposta de Pera, com a torre de Gálata, que emergia em meio ao cortejo de aldeias e choupanas; da outra, via-se o canal do porto que desembocava no Braço de São Jorge; e, por fim, a terceira dava para o Ocidente, e dela devia-se ver toda Constantinopla. Mas naquela manhã, a cor suave do céu fora ofuscada pela densa fumaça dos palácios e das basílicas consumidas pelo fogo. Era o terceiro incêndio que castigava a cidade nos últimos nove meses, o primeiro destruíra lojas e reservas da corte, desde as Blachernae até às muralhas de Constantino; o segundo devorara todos os armazéns dos venezianos, dos amalfitanos, dos pisanos, e dos hebreus, de Perama até a outra costa, com excepção do bairro dos genoveses, quase aos pés da Acrópole; e o terceiro estava agora queimando por todas as regiões. Na parte baixa, havia um verdadeiro rio de chamas, caíam os pórticos, desabavam os palácios, quebravam-se as colunas, as bolas de fogo que saltavam do centro daquele incêndio consumiam as casas distantes, depois as chamas, incitadas pelos ventos, que caprichosamente alimentavam aquele inferno, voltavam a devorar o que antes haviam poupado. No alto, erguiam-se nuvens densas, ainda avermelhadas na base pelos reflexos do fogo, mas de uma cor diversa, não se sabe se por uma ilusão dos raios do sol nascente ou se pela natureza das especiarias, das madeiras ou de outra matéria em combustão. E mais, conforme o vento soprava, de pontos diferentes da cidade, provinham aromas de noz-moscada, canela, pimenta, açafrão, mostarda ou gengibre, assim, a mais bela cidade do mundo queimava, mas como um braseiro de aromas perfumados.
Baudolino dava as costas à terceira bífora, e parecia uma sombra escura aureolada pela dupla claridade do dia e do incêndio. Nicetas ora o escutava, ora recordava os acontecimentos dos dias passados. Assim, aquela manhã de quarta-feira, 14 de Abril do ano do Senhor de 1204, ou seja seis mil setecentos e doze desde o início do mundo, como se costumava calcular em Bizâncio, era já o segundo dia desde que os bárbaros haviam tomado posse de Constantinopla. O exército bizantino tão cintilante com as suas armaduras, escudos e elmos quando desfilava, e a guarda imperial de mercenários ingleses e dinamarqueses, armados com as suas terríveis bipenes, que ainda na sexta-feira haviam enfrentado os inimigos, lutando com bravura, cederam na segunda-feira, quando o inimigo violou as muralhas. Foi uma vitória tão inesperada que os próprios vencedores pararam, temerosos, ao anoitecer, esperando uma reacção e, para manter distantes os defensores, atearam um novo incêndio. Mas, na manhã de terça-feira, toda a cidade percebeu que, durante a noite, o usurpador Aleixo Ducas Murtzuflo fugira para o interior. Os cidadãos, órfãos agora, e derrotados, amaldiçoaram aquele ladrão de tronos que celebraram até a noite anterior, assim como o haviam lisonjeado quando estrangulara o seu predecessor, e não sabendo o que fazer (assustados, assustados, assustados, que vergonha, lamentava Nicetas, diante da desonra daquela rendição), haviam-se reunido num grande cortejo, com o patriarca e todos os padres com vestes rituais, os monges que imploravam misericórdia, prontos a venderem-se aos novos poderosos como sempre se venderam aos antigos, as cruzes e as imagens de Nosso Senhor erguidas para o alto, não menos do que os seus gritos e lamentos, foram assim ao encontro dos conquistadores, esperando amansá-los.
Que loucura esperar piedade daqueles bárbaros, que não precisavam que o inimigo se rendesse para fazer o que sonhavam há meses: destruir a cidade mais ampla, mais povoada, mais rica, mais nobre do mundo, e dividirem os seus espólios. O imenso cortejo dos chorões estava diante de incrédulos de cenho irado, com a espada ainda vermelha de sangue, com cavalos que tropeavam. Como se o cortejo não existisse, deram início ao saque. Ó Cristo Senhor, quantas não foram as nossas angústias e tribulações! Mas como e por que o fragor do mar, o ofuscamento ou a total escuridão do sol, o halo vermelho da lua, o movimento das estrelas não haviam previsto aquela última desventura? Assim chorava Nicetas, na noite de terça-feira, com os seus passos perdidos naquela cidade que fora a capital dos últimos romanos, buscando evitar as hordas dos infiéis e encontrando as ruas obstruídas por novos focos de incêndio, desesperado por não poder tomar o caminho de casa, temendo que alguns daqueles canalhas ameaçassem a sua família». In Umberto Eco, Baudolino, 2001, tradução de Marco Lucchesi, Editora Record, Brasil, 2010, ISBN 978-857-799-002-3.

Cortesia de ERecord/JDACT