segunda-feira, 4 de janeiro de 2016

O Amor de Camilo Pessanha. António Osório. «O jovem conta que Camilo Pessanha recitava, a seu lado, os versos pelas ruas de Lisboa, e a forma como o fazia: vivendo eu num meio de literatos, nunca tinha dado pela maravilha da poesia…»

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Ana de Castro e o Salvamento da Clepsydra
«(…) Assistia, quase sempre, aos seus almoços no hotel e dali começavam as peregrinações pela cidade, […] À tarde, o habitual encontro com os literatos, seus amigos, frequentemente no Café Martinho. Ali conheci Henrique Trindade Coelho, Carlos Amaro, etc. Camilo que, atento à minha idade, tinha o cuidado de me fazer merendar, preferia para si o bom café [...]. Naquela mesa de Camilo Pessanha a poesia era senhora absoluta e todos o escutavam com religioso silêncio e rendido entusiasmo […]. Contudo, o ópio, que foi a maldição da sua vida, não o deixava em paz: de vez em quando, parando nas nossas caminhadas, Camilo Pessanha, absorto, tirava do bolso do casaco uma pequena caixa de papelão, destas que as farmácias dão com as receitas coladas e, sem olhar com os seus finos dedos tacteando num pó amarelo, tirava um pequeno grânulo, não sei se mais do que um, muito escuro, e levava-o à boca. Só depois eu soube, por meu tio Alberto, que era a terrível droga que em Macau, fumada a longos haustos, lhe repunha as forças e o tornava à vida. O jovem conta que Camilo Pessanha recitava, a seu lado, os versos pelas ruas de Lisboa, e a forma como o fazia: vivendo eu num meio de literatos, nunca tinha dado pela maravilha da poesia em sua música própria. Só muitos anos depois o sentiria de novo, ouvindo poemas de Cecília Meireles por ela recitados. Camilo Pessanha possuía a musicalidade dos seus versos, como que em estado natural. Da sua poesia, era ela a música essencial e suplicada. Recitando, dir-se-ia que acordara de uma abstracta melancolia para ser ele o choro, a tristeza, a emotividade e a dor dos seus próprios versos. Quando, senhor da minha missão, sentia, com orgulho, o braço de Camilo Pessanha apoiado no meu e o ouvia, talvez julgando-me desatento, recitar, recitar sempre e a pequenas pausas, que pena tinha ao pensar que a memória me não guardasse aqueles versos e aquela música! Felizmente, tanta vez lhe ouvi os poemas que um dia haviam de formar a Clepsydra que era quase perfeita a sua imitação. Durante anos, em muitas circunstâncias da minha vida, recitava poemas seus como ele.
Neste belíssimo testemunho, conta-se ainda, sem poder precisar, que numa revista ou jornal ilustrado, fora referido ter sido visto: Camilo Pessanha, já cego, caminhando nas ruas de Lisboa guiado por um rapazito loiro. Não posso garantir a exactidão dessa referência que nunca consegui encontrar. Fosse como fosse, fica feita agora a identificação do mocito loiro. Eram, efectivamente, dessa cor os meus cabelos. O que o poeta não estava era cego, isso não, embora lhe servissem os meus olhos para poder ele evadir-se com a sua poesia e caminhar sem usar os seus. Antes de publicada a evocação de Camilo Pessanha, António Osório Castro enviou o texto dactilografado para apreciação do seu primo e grande amigo João Castro Osório, a amizade que os unia era de irmãos verdadeiros. Conservo as seis páginas manuscritas nas quais João Castro Osório se pronuncia sobre esse trabalho: gostei muito do teu breve ensaio psicológico sobre Camilo Pessanha e sobre ti também. E vejo que a tanta distância, no tempo, o poeta foi uma profunda influência na tua alma (...). O que relembras está certíssimo e até me vem tirar algumas dúvidas, quanto a datas.
Por último, renova os agradecimentos comovidos por tudo, na referência a minha mãe (e bem posso dizer nossa) e ao meu esforço. E elucida o primo sobre a revista onde se refere que Camilo Pessanha cego era guiado pelos olhos de uma criança em que se apoiava: é a Portucale, 1931. Camilo Pessanha e Raul Brandão, duas grandes almas, também nisso próximas: gostavam de passear por Lisboa guiados pelos olhos de jovens amigos, como se fossem cegos, melhor, como se dependessem, andando, tão-só do afecto de alguém. Camilo deu um merecido prémio ao cedido pajem, fazendo-se retratar com ele, no dia 30 de Março de 1916. É uma das mais calmas (diria mesmo, felizes) fotografias de Pessanha, não falando, claro, no jovem, exultante. Além da missão de o levar a sua casa, o pajem satisfazia outro feminino cuidado: ser o companheiro, como escreve João Castro Osório, vigilante de Camilo Pessanha, em suas andanças diurnas, entre o almoço e o jantar, evitando que, na distracção frequente, [...] ele fosse atropelado ou se perdesse durante horas, pois, memória maravilhosa em tantas actividades mentais, não conseguia fixar qualquer caminho, com segurança, na cidade». In António Osório, O Amor de Camilo Pessanha, edições ELO, obra apoiada pela Fundação Oriente, colecção de Poesia e Ensaio, Linha de Água, 2005, ISBN 972-8753-43-8.

Cortesia da FOriente/LdeÁgua/JDACT