sábado, 9 de janeiro de 2016

O Enviado. Maria Isabel Barreno. «Haviam aterrado nas alvoroçadas ruas duma grande cidade dos finais do século XX. E o inquisidor maravilhara-se vendo uma, duas pessoas viradas, outra mais além, em secreta humildade…»

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O enviado
«Que bem pensado, disse o inquisidor. Confessionários nas ruas para que as pessoas possam, a qualquer momento, aliviar as suas consciências. Não são confessionários, respondeu o Guia do Tempo. São caixas do multibanco. Sítios onde as pessoas vêm levantar dinheiro. O inquisidor admirou-se muito. E dão assim dinheiro às pessoas? Elas têm um número da sua conta bancária, um número secreto. Só lhes dão dinheiro se antes o depositaram. O Guia tentava explicar mas tomava-se tudo muito confuso. Haviam sido três a ser enviados para desmalhar as circunstâncias conducentes ao holocausto final da humanidade. Os outros haviam-se espalhado por épocas diversas, a este Guia coubera a delicada missão de levar um inquisidor três séculos e meio para diante do seu tempo dito natural, em breve visita.
Achara-se necessário interceptar a primeira versão do trajecto de uma lista de figuras, entre elas um inquisidor e um capitalista, e fora cuidadosamente escolhida a forma de juntar duas personagens numa só. Era uma espécie de salvação concentrada, não dos próprios envolvidos, mas dos outros, através deles. Ao princípio o Guia pudera controlar as coisas sem problemas. Convencera o inquisidor que era um anjo, e que o levava a visitar outros mundos, extraordinárias revelações divinas para os servos escolhidos. O bom aspecto do Guia, aliás rigorosamente programado, com todos os adereços da imagem humana sobre os anjos, e a vaidade do inquisidor tinham definitivamente tomado esta versão dos acontecimentos altamente credível para o referido inquisidor, após umas brevíssimas suspeitas sobre tentações do demónio e bruxarias dos seus inimigos e vítimas, estes dois conjuntos largamente coincidindo, escusado será dizê-lo.
O inquisidor partira de coração jubiloso na leve cápsula, tão transparente que mal se via e ele a tomara por um halo de santidade. Sentira o ligeiro transtorno da viagem como uma aproximação do poder divino, o Guia tivera que ir buscar, a um futuro plausível, uma aperfeiçoada cápsula de viajar no tempo, única maneira de transportar o seu pesado e opaco convidado. Partira então o inquisidor julgando que ficava e sobre ele se abatia a graça divina na forma de um vago enjoo e de uns apressados riscos cinzentos preenchendo o seu cérebro. Dissera três vezes Senhor eu não sou digno, e tendo-se-lhe então aclarado a visão e o pensamento, sossegado o estômago numa sensação de vazio quase agradável, achou suas preces eficazes, sentiu-se acolhido pelos favores divinos e digno desses favores.
Haviam aterrado nas alvoroçadas ruas duma grande cidade dos finais do século XX. E o inquisidor maravilhara-se vendo uma, duas pessoas viradas, outra mais além, em secreta humildade, para aquelas caixas incrustadas nas paredes. Ignorara os prédios altos, os carros, os autocarros, os trajes; seleccionara aquela visão reconfortante, reconhecida: confessionários, repetia. O Guia desistiu de explicações confusas, tudo poderia servir aos seus fins. Resumiu: Deus sabe tudo. Não têm os apóstolos e seus sucessores o poder de dar a absolvição após confissão dos pecados? Hoje em dia, e porque o mundo mudou, a absolvição vem na forma de dinheiro. O inquisidor pensou. Pensou muito. Havia uma relação, ele os bens dos culpados? Tantos tesouros acumulara a igreja que agora... Agora? No céu? Diz-me, pediu, onde estamos nós afinal? Onde achas que estamos? No céu, sem dúvida... Embora eu pensasse... Onde estão os anjos cantando? Por aí, respondeu o Guia, evasivo. O inquisidor apressou-se a fugir das dúvidas antes que estas o tomassem indigno das visões esplêndidas. Sim, ali podia viver-se a outra face da moeda: o dinheiro acumulado era devolvido aos bons para que eles pudessem gozar o conforto. Transportaste-me ao céu, sim, eu creio, disse». In Maria Isabel Barreno, O Enviado (Contos), Editorial Caminho, Lisboa, 1991, ISBN 972-210-574-4.

Cortesia de ECaminho/JDACT