sexta-feira, 15 de janeiro de 2016

Grácia Nasi. Esther Mucznik. «E em Maio de 1497, o rei doaria ao concelho de Lisboa o cemitério judaico para pastos e rossio e as pedras das campas e cabeceiras dos jazigos para a fábrica do hospital real de Todos-os-Santos»

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… e ali lhes deitaram a sua água de baptismo...
«(…) O certo é que o termo de expulsão não é apropriado para designar o que se passou em Portugal, onde poucos foram os que lograram sair. Nesta altura, a grande maioria permaneceu no reino como cristãos-novos, mantendo a fé e as práticas judaicas secretas no interior dos seus lares. Foi o baptismo geral forçado, planificado e executado de forma fria e calculada que pôs fim à presença do judaísmo em Portugal. O que Maria José Tavares denomina de religiocídio. Entre os poucos que saíram neste período, contam-se o já mencionado sábio e médico Abraão Saba, cujos dois filhos foram baptizados, e que enterrou o seu tesouro literário debaixo de uma árvore, a que denominou o carvalho do pranto, Abraão Zacuto, matemático e astrólogo, Joseph Caro, talmudista e comentador da Bíblia, Jacó Ibn Chabib, gramático, e que passou a assinar aquele que nunca se ajoelhou para adorar nem Baal, nem fogo nem pau, todos para o Império Otomano. Ao deixar estas e outras grandes figuras, o rei Manuel I procurava muito provavelmente decapitar a elite dos judeus cristianizados. A grande diáspora dos conversos só acontecerá de facto depois do massacre de 1506 e sobretudo depois do estabelecimento da Inquisição (maldita), em 1536. Desse grupo fará parte Grácia Nasi.

Que se nam posa fazer ordenaçam nova sobre elles como sobre gemte destimta...
A acção do rei Manuel I não se limitou às conversões forçadas. Ao mesmo tempo e sem esperar pelo prazo final de Outubro, o rei levou a cabo a destruição violenta, rápida e total do culto judaico: ordenou a destruição de sinagogas, escolas e bibliotecas; proibiu o uso e o estudo do hebraico, que passou a ser oficialmente restringido apenas à universidade; proibiu o exercício do culto e todas as instituições jurídicas, administrativas e religiosas judaicas. A 15 de Março, a sinagoga de Évora é doada ao Bispo de Tânger e a sinagoga grande de Lisboa reverte para a Coroa, sendo entregue em 1505 à Ordem de Cristo e transformada em igreja. Garcia de Resende afirma: … vimos synagogas mexquitas em que sempre erão dictas e prégadas heresias, tornadas em nossos dias igrejas sanctds benditas… As sinagogas locais seriam entregues a particulares, como residências. E em Maio de 1497, o rei doaria ao concelho de Lisboa o cemitério judaico para pastos e rossio e as pedras das campas e cabeceiras dos jazigos para a fábrica do hospital real de Todos-os-Santos.
Também a posse e existência de livros hebraicos foi proibida, excepto aos físicos e cirurgiões. Em Lisboa, existia um centro de copistas que produziu uma obra notável da qual se destacam, pela beleza da sua caligrafia e das suas iluminuras, as cópias parciais ou integrais da Bíblia executadas entre 1469 e 1496. É este centro ou escola que esteve na origem da instalação em Portugal, em Faro, Lisboa e Leiria, das primeiras oficinas de impressão, sendo em caracteres hebraicos os primeiros livros impressos em Portugal, nas oficinas de Samuel Gacon, Eliezer Toledano e Samuel d’Ortas. Estas obras e outras trazidas de Espanha pelos judeus refugiados deram origem a uma biblioteca hebraica riquíssima, avaliada por um contemporâneo em mais de cem mil cruzados, que Manuel I não hesitou em doar e vender ao desbarato, provavelmente sem noção do seu valor literário, científico e histórico. Manuel I não esperou pelo final de Outubro de 1497 para destruir todos os vestígios do culto judaico. Mesmo antes de expirar o prazo para a sua partida, escreve Maria José Tavares, os judeus assistiam impotentes ao devassar dos seus templos, escolas e bibliotecas e à profanação dos seus cemitérios. O que nos permite concluir que ainda antes de assinar o decreto de expulsão, Manuel I já teria premeditado a conversão geral dos judeus de Portugal.
Ao mesmo tempo que procede à destruição do culto judaico, Manuel I vai levar a cabo o outro lado da sua política que visava a integração social dos antigos judeus, agora baptizados. A primeira medida é a protecção dos cristãos-novos. A ordenação de 30 de Maio de 1497 proíbe, durante quinze anos, as inquirições sobre o seu passado judaico: que se nam posa fazer ordenaçam nova sobre elles como sobre gemte destimta, pois que sam convertidos à nossa samta fee. Este decreto é confirmado a 13 de Março de 1507 e prolongado em 1515 por mais dezasseis anos. Ou seja, no tempo de Manuel I, os cristãos-novos estão isentos do inquérito sobre crimes contra a fé». In Esther Mucznik, Grácia Nasi, A judia portuguesa do século XVI que desafiou o seu próprio destino, A Esfera dos Livros, Lisboa, 2010, ISBN 978-989-626-244-0.

Cortesia de ELivros/JDACT