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wikipedia e jdact
«Quem algum
dia teve o privilégio de ser recebido na biblioteca pessoal de José Vitorino
Pina Martins, na Rua Marquês da Fronteira, foi possivelmente surpreendido pela
revelação de um pequeno livro, de encadernação oitocentista e cor vermelha,
guardado em caixa forrada a veludo da mesma cor: nada menos que a edição de
Horácio saída em 1501 dos prelos de
Aldo Manúcio, adquirida em Paris a um antiquário, André James, grande erudito,
especialmente atento às novidades do mercado livreiro e particularmente lúcido
em reconhecer e identificar raridades de origem portuguesa. Foi este exemplar
dispensado por ele a José Vitorino, a título de favor e amizade, por uma
pequena fortuna, de nada menos que 80 000 francos franceses (em moeda antiga,
cerca de 2 500 contos, ou sejam 12 500 euros). Trata-se de edição aldina, que se
serve do elegante tipo cursivo inventado por Aldo e desenhado por André Grifo;
é a segunda obra de autores clássicos em formato de bolso (manual) planeado por
Aldo e por ele lançado a público em 1501:
depois do seu mítico Virgílio, de Abril, Horácio é de Maio; segue-se Petrarca,
em Julho; Juvenal e Pérsio, em Agosto; Marcial, em Dezembro. A edição é
considerada uma das dez mais raras das aldinas: recentemente, um antiquário
apresentava para venda um exemplar ao preço de 27 374,00 USD (19 000,00 EUR). O
exemplar faz parte da Biblioteca Pina Martins, no Centro de História do ex-Banco
Espírito Santo, em Lisboa, Praça do Comércio, para onde transitou a Biblioteca
reunida pelo seu proprietário, por generosa e lúcida decisão do Presidente do
Conselho de Administração do ex-BES, Ricardo Salgado, quando solicitado pelo
Presidente da Academia das Ciências de Lisboa a realizar a aquisição daquela
Biblioteca para evitar que ela entrasse em deriva de efeitos imprevisíveis
quanto à sua conservação.
Pina Martins
guardava esse exemplar em grande honra e teve oportunidade de escrever as
razões do apreço que lhe devotava, quando elaborou as memórias da sua
biblioteca em Histórias de Livros para a História do Livro. O
enlevo consagrado a este exemplar do texto de Horácio tê-lo-ia ouvido o
visitante da biblioteca da própria voz do seu proprietário, pois com ele
costumava iniciar a visita. No livro, ficou uma interpelação que define uma
vida; pergunta J. V. Pina Martins: … já algum dia experimentaste, caro leitor,
como é diferente ler uma poesia de Horácio, ou de Virgílio, ou de Petrarca, por
um livro mal encadernado e por um exemplar de edição raríssima encadernado por
um grande artista? (Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 2007) A resposta
não vem enunciada no livro; compreende-se: há sensações e sentimentos
intraduzíveis, para os quais as palavras são supérfluas ou correm o risco de
(entre)cortar o enlevo; no modo interrogativo, porém, fica patente que há
novidades que apenas cada um pode experimentar e que, relativamente a uma
edição modelar, persistem afectos tanto mais profundamente acalentados quanto
mais se percebe o significado cultural desse livro, depois de serem
escrutinadas as razões das escolhas do editor e serem conhecidos os efeitos
decorrentes do seu trabalho (na edição de Juvenal, também em 1501, Aldo explica a seu amigo Cipião
Carteromaco: preparámos e agora damos a público as Sátiras de Juvenal e Pérsio
num formato deveras pequeno de tal maneira que possa ser mais facilmente tomado
na mão e aprendido de cor; para não falar em ser lido, por quem quer que seja; as
fontes tipográficas de Aldo para os formatos in 8º haviam sido desenhadas pelos
calígrafos Pompónio Leto e Bartolomeu Sanvito e foram moldados por Francesco
Griffo, de Bolonha).
Havia afecto
profundo àquela edição renascentista, que era uma das mais valiosas do de
quantas se perfilavam nas estantes da sua biblioteca: esse afecto exprimia-o
Pina Martins em modo de reciprocidade, pois (confidenciava) os grandes autores
e as melhores edições procuram aqueles que os amam. Nesse universo cabiam
sobretudo as edições aldinas que revisitava com frequência: entre elas o Iamblicus,
impresso em 1497 e o In Calumniatorem
Platonis, de Bessarion, publicado por Aldo em 1503; perseguira também o Plato
de 1513, em que o mesmo
editor se dirigia a Leão X e, por entre o louvor das letras (que só a paz
permitia assegurar), comparava a novidade da imprensa com a gesta que os
Portugueses estavam a realizar nas Índias». In Aires A. Nascimento, Pina Martins Em Convívio com os Clássicos, Comunicação
apresentada à Classe de Letras, Academia
das Ciências de Lisboa, Classe de Letras, Memórias da Academia das Ciências de
Lisboa, 21 de Janeiro de 2010.
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