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«Entreabriu
um olho com dificuldade e tentou ver no escuro. Tinha adormecido havia horas, ou
assim supunha embalado no monótono ping-pang da água que se infiltrava do telhado
para cair no balde de zinco, e no plic-ploc inconfundível e mais espaçado das gotas
que, escorrendo do rebaixo, ficavam um instante a tremer suspensas da aresta do
alizar e depois tombavam desamparadas na bacia do lavatório, ali posta, como o balde
além, expressamente para as recolher. Deixara de ouvir no sono esse gotejo, de começo,
enervante, agora familiar, e o silêncio tinha-o despertado. Nem sequer ouvia a respiração
do companheiro, que, quando não ressonava fragorosamente, sonhava em voz alta, dava
brados de comando a imaginários soldados, ria às gargalhadas, ou suspirava e gania
em misteriosas sensações de gozo: silêncio toral nas fileiras! Soergueu-se no cotovelo
e, de ouvido apurado e olhos já bem abertos, se papudos e algo ramelosos, ficou
a espiar a opacidade nocturna do sótão. De começo nada pôde ver, e só o cicio da
chuva lá fora lhe chegava aos ouvidos ali no esconso para onde empurrara o catre,
a fim de escapar à tortura inquisitorial da pingadeira: mas se a chuva continuava,
porque é que a água deixara de gotejar nos dois recipientes? Inquietou-se. Mais
afeito à escuridão, percebeu que, do lado oposto do acanhado espaço, o outro catre
estava desfeito e vazio. Impossível! Tinham-se deitado ao mesmo tempo!
Alarmado, sentou-se de salto. Só então pôde ver claro, e o que viu arrancou-lhe
um berro dilacerado: o corpo enorme e nu de Vladimir Mirônovitch Tatarátsin
pendia da lucarna do tecto, com os braços hirtos colados ao tronco, em rigorosa
posição regulamentar de sentido. O infeliz tinha-se enforcado! Othon
Kirílovitch Buldógov rebolou aflitivamente do catre abaixo, e aos tropeções precipitou-se.
Apertou ao peito as pernas felpudas e musculosas do companheiro, agora frias de
neve, desatou a sacudi-las convulsivamente e a tentar erguê-las no ar, ao mesmo
tempo que tartamudeava de pena, pavor e solidão: Vladimir Mirônovitch, acorda! Acorda,
Vládia! Ah meu Deus, acorda, meu camarada e meu irmão! Não me deixes ficar aqui
sozinho...
Pode
alguém dizer a um cadáver que acorde? O facto é que o corpanzil, viscoso da água
vinda do céu para ensopar os jornais velhos que forravam o soalho, estremeceu;
uma voz rouca e sonolenta respondeu da noite e do telhado, e Othon Kirílovitch caiu
de joelhos, aparentemente não menos assombrado agora com a ressurreição, do que
momentos antes com o suicídio do seu inseparável. Vladimir Mirônovitch recolheu
com algum custo a volumosa cabeça ao interior do sótão, fechou e trancou a
vigia, agachou-se no mocho a que estava trepado, e inclinou-se para o amigo.
Este, acocorado e ainda sacudido por um soluço ocasional, contemplava-o incrédulo:
acordei estremunhado, dei pela tua falta, e quando te vi pendurado do tecto julguei
que te tinhas enforcado. Farto da vida, farto do exílio, farto disto tudo, Vladimir
Mirônovitch! Que ideia tão estúpida... Como se um Cossaco da Morte fosse capaz
de...! Limpou uma lágrima. O outro abanou a cabeça e passou-lhe um terno braço
pelos ombros: mas não, Othon Kirílovitch, que lembrança a tua!
Há semanas
que eu não tomava um banho, apeteceu-me um chuveiro. Tu estavas a dormir tão sossegado,
e eu às voltas com a insónia... Levantei-me sem fazer bulha, abri a trapeira e regalei-me
de chuva, com a cabeça ao léu. Estava morna, um consolo! Passou a mão pelo couro
cabeludo, a espremer fora a água. Acho que adormeci em pé, com o queixo apoiado
no caixilho. Ah, agora me lembro! Estava a sonhar que andava a nadar no Don.
Nisto, sinto-me agarrado pelas canelas... Pregaste-me um susto, Othonchka!
Então não julguei eu que era um tubarão? Esta não lembra ao Diabo. No Don! Um tubarão
no Don! Desataram a rir em coro. Buldógov caiu sentado, depois de costas no soalho,
a espernear, em gargalhadas molhadas de um resto de pranto; o amigo, agachado no
banco, com uma peça anatómica essencial em espasmos e a pingar». In José
Rodrigues Miguéis, Nikalai! Nikalai!, Editorial Estampa, Círculo de Leitores,
Obras Completas, 1995, ISBN 972-421-180-0.
Cortesia
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