quarta-feira, 27 de janeiro de 2016

Nikalai! Nikalai! José Rodrigues Miguéis. «Há semanas que eu não tomava um banho, apeteceu-me um chuveiro. Tu estavas a dormir tão sossegado, e eu às voltas com a insónia...»

jdact

«Entreabriu um olho com dificuldade e tentou ver no escuro. Tinha adormecido havia horas, ou assim supunha embalado no monótono ping-pang da água que se infiltrava do telhado para cair no balde de zinco, e no plic-ploc inconfundível e mais espaçado das gotas que, escorrendo do rebaixo, ficavam um instante a tremer suspensas da aresta do alizar e depois tombavam desamparadas na bacia do lavatório, ali posta, como o balde além, expressamente para as recolher. Deixara de ouvir no sono esse gotejo, de começo, enervante, agora familiar, e o silêncio tinha-o despertado. Nem sequer ouvia a respiração do companheiro, que, quando não ressonava fragorosamente, sonhava em voz alta, dava brados de comando a imaginários soldados, ria às gargalhadas, ou suspirava e gania em misteriosas sensações de gozo: silêncio toral nas fileiras! Soergueu-se no cotovelo e, de ouvido apurado e olhos já bem abertos, se papudos e algo ramelosos, ficou a espiar a opacidade nocturna do sótão. De começo nada pôde ver, e só o cicio da chuva lá fora lhe chegava aos ouvidos ali no esconso para onde empurrara o catre, a fim de escapar à tortura inquisitorial da pingadeira: mas se a chuva continuava, porque é que a água deixara de gotejar nos dois recipientes? Inquietou-se. Mais afeito à escuridão, percebeu que, do lado oposto do acanhado espaço, o outro catre estava desfeito e vazio. Impossível! Tinham-se deitado ao mesmo tempo! Alarmado, sentou-se de salto. Só então pôde ver claro, e o que viu arrancou-lhe um berro dilacerado: o corpo enorme e nu de Vladimir Mirônovitch Tatarátsin pendia da lucarna do tecto, com os braços hirtos colados ao tronco, em rigorosa posição regulamentar de sentido. O infeliz tinha-se enforcado! Othon Kirílovitch Buldógov rebolou aflitivamente do catre abaixo, e aos tropeções precipitou-se. Apertou ao peito as pernas felpudas e musculosas do companheiro, agora frias de neve, desatou a sacudi-las convulsivamente e a tentar erguê-las no ar, ao mesmo tempo que tartamudeava de pena, pavor e solidão: Vladimir Mirônovitch, acorda! Acorda, Vládia! Ah meu Deus, acorda, meu camarada e meu irmão! Não me deixes ficar aqui sozinho...
Pode alguém dizer a um cadáver que acorde? O facto é que o corpanzil, viscoso da água vinda do céu para ensopar os jornais velhos que forravam o soalho, estremeceu; uma voz rouca e sonolenta respondeu da noite e do telhado, e Othon Kirílovitch caiu de joelhos, aparentemente não menos assombrado agora com a ressurreição, do que momentos antes com o suicídio do seu inseparável. Vladimir Mirônovitch recolheu com algum custo a volumosa cabeça ao interior do sótão, fechou e trancou a vigia, agachou-se no mocho a que estava trepado, e inclinou-se para o amigo. Este, acocorado e ainda sacudido por um soluço ocasional, contemplava-o incrédulo: acordei estremunhado, dei pela tua falta, e quando te vi pendurado do tecto julguei que te tinhas enforcado. Farto da vida, farto do exílio, farto disto tudo, Vladimir Mirônovitch! Que ideia tão estúpida... Como se um Cossaco da Morte fosse capaz de...! Limpou uma lágrima. O outro abanou a cabeça e passou-lhe um terno braço pelos ombros: mas não, Othon Kirílovitch, que lembrança a tua!
Há semanas que eu não tomava um banho, apeteceu-me um chuveiro. Tu estavas a dormir tão sossegado, e eu às voltas com a insónia... Levantei-me sem fazer bulha, abri a trapeira e regalei-me de chuva, com a cabeça ao léu. Estava morna, um consolo! Passou a mão pelo couro cabeludo, a espremer fora a água. Acho que adormeci em pé, com o queixo apoiado no caixilho. Ah, agora me lembro! Estava a sonhar que andava a nadar no Don. Nisto, sinto-me agarrado pelas canelas... Pregaste-me um susto, Othonchka! Então não julguei eu que era um tubarão? Esta não lembra ao Diabo. No Don! Um tubarão no Don! Desataram a rir em coro. Buldógov caiu sentado, depois de costas no soalho, a espernear, em gargalhadas molhadas de um resto de pranto; o amigo, agachado no banco, com uma peça anatómica essencial em espasmos e a pingar». In José Rodrigues Miguéis, Nikalai! Nikalai!, Editorial Estampa, Círculo de Leitores, Obras Completas, 1995, ISBN 972-421-180-0.

Cortesia de EEstampa/CLeitores/JDACT