sábado, 2 de janeiro de 2016

A Marginalia Satírica nos cadeirais do Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra e Sé do Funchal. Maria M. Braga. «A sátira incluía uma série de variantes, apoiando-se nos ditos populares e textos moralizadores de que a referida Stultifera Navis Nave é um dos melhores exemplos»

Cortesia de wikipedia e jdact

A luta dos sexos
«(…) O comportamento sexual dos religiosos sempre foi motivo de inquietação para as entidades superiores ainda que estas não estivessem isentas do mesmo pecado. No relato de visitação à igreja de S. Miguel de Torres Vedras (1462) ordena-se aos os vigários, capelães, priores que estejam a par de clérigos publicamente barregueiros que os proíbam de dizer missa. No caso do amancebado serem os próprios vigários e piores que assim vivam publicamente, ficavam encarregados os raçoeiros de não os consentirem, bem como de os obrigar a pagar multa ao aljube eclesiástico. O tema fazia as delícias da literatura satírica. No referido El Corbacho, publicado em 1483 os frades e seculares que não respeitavam as mulheres e eram conhecidos pelos seus feitos de tocar gaita. Por cá, Gil Vicente, na sequência da Nave dos Loucos de Sebastian Brant, faz aparecer o frade amantizado no auto da Barca do Inferno de Gil Vicente, vestido como um fidalgo e de mão dada com a moça cantando prazenteiro:

Frade: Corpo de Deus consagrado!

Pela fé de Jesu Cristo,
que eu nom posso entender isto!
Eu hei-de ser condenado?!...
Um padre tão namorado
e tanto dado à virtude?
Assi Deus me dê saúde,
que eu estou maravilhado!


E continua a desembainhar o espanto por o esperarem as chamas do Inferno...

Como? Por ser namorado

e folgar com üa mulher
se há um frade de perder,
com tanto salmo rezado?!...


Duas misericórdias do cadeiral coimbrão ilustram estes prazeres luxuriosos. Numa delas, um figura monstruosa, com hábito monacal deixando ver as cochas, devora um ser humano enrolado no seu corpo. Confrontada com representações paralelas tudo aponta para uma alusão ao pecado da sodomia figurado pela garganta do demónio. Noutro local assiste-se a uma cavalgada pecaminosa, em que frade se deixa levar pelo pecado da luxúria, em vez de a dominar, como sintomaticamente se depreende pela nudez da parte traseira do corpo (podem traçar-se paralelos com figurações dos frisos das cadeiras baixas do cadeiral da catedral de Sevilha assim como numa gravação em pedra de um tímpano da catedral de Notre-Dame de Paris).

As palavras loucas orelhas moucas
As críticas ao mau comportamento no interior do templo não se dirigiam apenas aos religiosos, nelas se incluíam os próprios crentes que preferiam distrair-se em conversas de má-língua. Como bem reparou Luíza Clode, uma figurinha do cadeiral da Sé do Funchal, representando um homem nu que caminha enquanto tapa os ouvidos, deve ser uma alusão a estes pecados de orelhas. O penitencial medievo de Martim Perez menciona-os como pequenos pecados que devem ser confessados à entrada da missa ou no fim da pregação. ...Das orelhas digo: se ouvyo com ellas murmurar e dos seus christaãos mal dizer. Se ouvyo doestar, Se ouvyo cantar cantares vaãos. Se ouvyo palavras torpes ou mentiras ou palavras ouçiosas e vaãos dizer. Se ouvyo novas do mundo recontar (...)se com ellas nom ouvyo e entendeu as palavras da pregaçom. Se com ellas nom ouvyo as horas de Deus, com toda a devoçom... Como dizia o ditado: quem bem vai cantando não pode ir orando, o que pode explicar o facto da admoestação emparelhar com uma série de figurinhas que se entregam às folias das gaitas de foles, representadas no mesmo cadeiral, ou às reacções satíricas dos cães que tapam as orelhas perante bicharocos que os desafiam ao som de liras, como se pode ver no exemplar coimbrão.
A sátira incluía uma série de variantes, apoiando-se nos ditos populares e textos moralizadores de que a referida Stultifera Navis Nave é um dos melhores exemplos. O autor compara os religiosos pouco atentos aos ofícios corais com a multidão que também se entretinha com as momices do famoso Roraffe, boneco em forma de camponês barbudo, colocado junto ao órgão da catedral de Estrasburgo. Como se diz num outro verso, louco é também o guardador de ruídos, o crédulo de ouvido fino e orelha larga que enche a cabeça de balelas. Quanto aos linguarudos, dava-se-lhes o conselho de enfiarem uma meia na boca, antes que se lhes fritassem as línguas na grelha». In Maria Manuela Braga, A Marginalia Satírica nos cadeirais do Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra e Sé do Funchal, Revista Medievalista, director Luís Krus, Ano 1, Nº 1, Instituto de Estudos Medievais, FCSH-UNL, FCT, 2005, ISSN 1646-740X.

Cortesia de RMedievalista/JDACT