terça-feira, 5 de janeiro de 2016

Cartas de Amor. Fernando Pessoa. «Bombom é um doce eu ouvi dizer não que isso fosse bom de saber, o doce enfim não é para mim... Do Fernando tenho também um cachimbo. Ele fumava muito. Cachimbo e cigarros. Até tinha as pontas dos dedos amarelas»

jdact e wikipedia

O Namoro
«(…) Era duma delicadeza e duma ternura imensa. Quase todos os dias me levava um presente, que escondia dentro das gavetas da minha secretária, como já contei, para me fazer surpresa quando eu chegava de manhã. Um dia encontrei uma caixa de fósforos com dois meiguinhos lá dentro. Meiguinhos eram uns bonequinhos que apareceram na altura, macho e fêmea, feitos de arame, coberto de fitilho de seda. Já não os tenho. Outra vez foi uma pulseira de filigrana, que sempre usei, e que ainda tenho. Duas caixinhas, em filigrana também, douradas, muito bonitas. E conservo um medalhão em esmalte, com uns gatinhos, que o Fernando me deu para eu pôr a sua fotografia, coisa que nunca fiz pois a única foto que tinha dele, e, como se sabe, ele não gostava nada de tirar retratos, era muito grande, não cabia no medalhão, e eu tive pena de a estragar, recortando. Por acaso, usei-o sempre com uma fotografia do meu sobrinho Carlos, que ainda hoje lá está. Como eu era muito gulosa, e ainda sou, e o Fernando sabia-o bem, muito bem, levava-me de presente, muitas vezes. Rebuçados e bombons. Dentro de uma caixa de bombons, um dia, encontrei estes versos:

Bombom é um doce
Eu ouvi dizer
Não que isso fosse
Bom de saber
O doce enfim
Não é para mim...

Do Fernando tenho também um cachimbo. Ele fumava muito. Cachimbo e cigarros. Até tinha as pontas dos dedos amarelas. Eu ralhava muito com ele e de brincadeira dizia-lhe: … um dia tiro-te esse cachimbo. E tirei mesmo. Ele achou muita graça, como de resto achava a tudo o que eu fazia ou dizia, e nunca mo pediu. Ainda o tenho. Encontrávamo-nos todos os dias, e, quase sempre, mesmo depois de eu ter deixado o escritório, à porta da Livraria Ingleza, na Rua do Arsenal, onde o Fernando ia comprar jornais. Além disso, escrevíamo-nos muito. As cartas eram-me entregues, normalmente, pelo grumete do escritório, o Osório. Foi um namoro simples, até certo ponto igual ao de toda a gente, embora o Fernando nunca tivesse querido ir a minha casa, como era habitual da parte de qualquer namorado. Dizia-me: … sabes, é preciso compreender que isso é de gente vulgar, e eu não sou vulgar. Eu compreendia-o e aceitava-o exactamente assim, com ele era. Por exemplo, dizia-me também muitas vezes: … não digas a ninguém que nos namoramos, é ridículo. Amamo-nos.
Passeávamos e conversávamos acerca de tudo, das coisas mais simples. De poesia, dos livros que lia, das suas aspirações, da família. Lembro-me do Fernando me dizer que era sidonista. Fez um dia uns versos a Sidónio Pais, que me ofereceu, mas que, infelizmente, desapareceram, assim como os manuscritos de alguns outros versos que aqui recordo. Ele era também conhecido como monárquico; mas dizia-me. Eu não sou monárquico, sou talassa. Não posso passar à porta da Brasileira porque sou agredido. Passo do lado de lá, se não apanho uma bengalada. O Fernando adorava-me, e tinha uns repentes de paixão que me assustavam, mas que ao mesmo tempo me divertiam. Por exemplo, um dia, no escritório, o primo tinha saído, e ele entrou no meu gabinete. Sem dizer uma palavra pegou-me ao colo, levou-me para a outra sala, sentou-me numa cadeira e ajoelhou-se a meus pés dizendo as maiores ternuras. Outra vez, num destes seus ataques repentinos, estávamos nós na paragem do eléctrico na Rua de S. Bento, empurrou-me para o vão de uma escada. Não percebi o que era; até pensei que fosse ele que, pela sua timidez, tivesse visto alguém e não quisesse que nos vissem juntos. Mas, sem eu esperar, agarrou-me com toda a força e beijou-me: um beijo enorme, enorme.
Ou, então, acontecia estarmos muito bem a conversar, e de repente ele dizer-me uma coisa que não vinha nada a propósito, como, por exemplo, chamar-me ácido sulfúrico, mas isto dito com a maior paixão. Entre Março e Abril desse ano, deixei o escritório Félix e Valladas, e fui para a casa C. Dupin no Cais do Sodré. O Fernando acompanhava-me todos os dias, daí para casa de minha irmã, no Rossio. Os meus pais viviam na Rua dos Poiais de S. Bento, esquina para a Rua Caetano Palha, mas eu passava parte do tempo em casa desta minha irmã de quem fazia uma diferença de vinte anos. Ela tratava-me como filha, adorava-me, e como só tinha um filho único, o meu sobrinho Carlos Queiroz, gostava imenso da minha companhia. Eu, claro, era muito nova, muito alegre e, portanto, preferia estar em casa dela. A minha mãe, coitada, passavam-se dias sem me ver, até que, cheia de saudadas, me mandava para casa. Nessas alturas, então, o Fernando e eu combinávamos uma hora para eu estar à janela e ele passar, para assim nos vermos. O meu pai nem sonhava que nós nos namorávamos. Eu ia para a janela e, à hora combinada, ele aparecia. Passava no passeio da frente, muito discretamente, como aliás procedia em tudo, e disfarçadamente fazia-me caretas e atirava-me beijos. Depois, ia pela rua abaixo (parece impossível um homem destes..., subindo e descendo os degraus de todas as portas aos pulinhos, só para eu achar graça. Na 2ª feira então, quando nos encontrávamos, comentávamos a cena e ríamos muito.
O Fernando, em geral, era muito alegre. Ria como uma criança, e achava muita graça às coisas. Dizia, por exemplo, ouvistaste? Em vez de ouviste. Quando saía para ir engraxar os sapatos, dizia-me: … eu já venho vou lavar os pés por fora. Um dia mandou-me um bilhetinho assim: … o meu amor é pequenino, tem calcinhas cor-de-rosa. Eu li aquilo, e fiquei indignada. Quando saímos, disse-lhe zangada: … ó Fernando, como é que você sabe, se eu tenho calcinhas cor-de-rosa ou não, você nunca viu... (tanto nos tratávamos por tu, como por você). E ele respondeu-me a rir: … não te zangues Bébé, é que todas as Bébés pequeninas têm calcinhas cor-de-rosa... Pouco tempo depois, mudei outra vez de emprego. Fui então para Belém, para uma companhia de material de aviação, como tradutora. O Fernando ia buscar-me todos os dias; conversávamos, portanto, durante o trajecto do carro eléctrico. Nesta altura, andava ele muito preocupado e ocupado com a mudança da casa de Benfica, para a Estrela, na Rua Coelho da Rocha. A mãe que vivia no Transvaal com as irmãs, tinha-o encarregado de arranjar casa, e foi ele sozinho que teve que tratar de tudo». In Fernando Pessoa, Cartas de Amor, Organização de David Mourão Ferreira, preâmbulo de Maria da Graça Queiroz, Lisboa, Edições Ática, 1978.

Cortesia de EÁtica/JDACT