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O primeiro voo
«(…) A notícia do infortúnio de
Jorge Távora não suscitou grande interesse junto dos comandos da armada,
prestes a zarpar e que tinha rebates de peste. Os parentes do rapaz juraram que
iam recuperar o corpo para lhe dar sepultura condigna. Espero que a carne
esteja suficientemente corrompida para que não percebam os golpes que lhe deste,
comentara Tristão Coutinho para o seu amigo. Não te preocupes, Tristão;
assumirei as minhas responsabilidades se for caso disso. Por agora tenho outro
assunto para tratar. Esquece o Jerónimo e a Filipa. Estou marcado para morrer,
mas antes hei-de matar aquele cão. Os dois amigos envergavam as insígnias da
Casa de Viseu. Quando soubera quem era o novo amor de Filipa, cego de raiva,
Álvaro decidira limpar a sua honra, sem se preocupar com as consequências. Pensou
que a melhor forma seria integrar a hoste em que aquele homem ia combater,
eliminá-lo em plena batalha e de seguida deixar-se matar pelo inimigo. Só
Tristão Coutinho sabia da sanha vingativa de Álvaro Ataíde. Como o Jerónimo era
fidalgo da Casa do infante Henrique. arranjara forma de pedir ao rei que o
autorizasse a incorporar as fileiras do infante. El-rei João I tomara conta
dele quando tinha pouco mais de um ano, porque o seu pai e os tios haviam perecido
numa emboscada dos castelhanos nas imediações de Badajoz. A mãe morrera de
febres logo depois do seu nascimento, pelo que a criança ficara sem parentes próximos.
A
armada real andou pelo estreito de Gibraltar durante várias semanas. Quando
parecia que el-rei ia desistir da empresa, soou a notícia de que no dia seguinte
as forças do infante Henrique iam assaltar a praia de Ceuta. O rei João queria
ganhar uma posição para lançar um assalto contra a cidade moura. Foi grande o
burburinho nos navios das gentes da Casa de Viseu, e nessa noite poucos dormiram.
Havia quem se confessasse, apesar da indulgência plenária recebida em Lagos;
muitos faziam os seus votos para o combate que se avizinhava. Álvaro limitou-se
a perscrutar o fio de areia que assinalava o seu último dia de vida e a
recordar as linhas do corpo de Filipa Andrade, a única mulher que conhecera.
Conseguira integrar a tripulação do navio em que ia o Jerónimo, porém, o petulante
não imaginava quem ele era. Álvaro já peitara um dos mestres do navio para o
deixar entrar no mesmo batel que o fidalgo de Sátão. Tinha tudo preparado, e
estava determinado a desferir o golpe fatal assim que pusessem pé em terra.
Escolhera para o desembarque um montante de duas mãos, cujo gume longo mais
facilmente poderia acertar num homem desprevenido.
Pela
madrugada, com Ceuta à vista, uma chusma de homens envoltos nas suas armaduras
começou a descer dos navios para os batéis que os haviam de levar até à praia.
Já estava Álvaro a postos na sua pequena embarcação quando viu cair,
desamparado, o sobrinho do bispo de Silves. Incapaz de se livrar do peso da
armadura, o infeliz morreu afogado em menos de um padre-nosso. Menos uma
testemunha, pensou Álvaro instintivamente, apesar do seu voto de que iria
deixar-se matar naquela jornada. O Sol já se erguera quando os batéis sob o
comando do infante Henrique se acercaram da praia. Aguardavam-nos alguns mouros,
mas foram impotentes para travar a arrancada da turba invasora. Álvaro via o
campo de batalha pelos orifícios do bacinete, e, dominando o desejo de eliminar
imediatamente o rival, avançou com o montante, esventrando, deceptando e
decapitando. A sua acção impetuosa levou a que outros o seguissem e o
corpo-a-corpo com os mouros tornou-se feroz. Álvaro estava de novo possuído
pela vontade que o levara a derrubar Jorge Távora, e tornou-se no primeiro
herói daquela manhã. Subitamente, a hoste invasora interrompeu a sua caminhada.
Na praia surgira o infante Duarte. O herdeiro da coroa entrou clandestinamente
na primeira vaga de assalto, e, face à sua aparição, o infante Henrique,
contrafeito, acabava de lhe entregar o comando dos assaltantes. Os mouros não
aproveitaram a hesitação da tropa portuguesa para se retirar ordeiramente;
tentaram empurrar a maré dos cristãos contra o mar, porém, sem sucesso». In
João Paulo O. Costa, O Fio do Tempo, 2009, Temas e Debates, Círculo de
Leitores, 2011, ISBN 978-989-644-135-7.
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