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«(…) Assim fez e deu-se
bem com o método. Além destas chamadas para um número sempre ocupado, o seu, e
de longos passeios em torno da casa, o resto do seu tempo continuou a ser
empregue em leituras. Leu as obras de Proust e de Tolstoi, esgotou Platão e
toda a literatura do Budismo Zen publicada até ao início da sua clausura,
estudou Plotino, saltou para Descartes e deste para os poetas. A sua vida retomou
o rumo que sempre desejara. Passou mais um ano. E, por alturas deste segundo
aniversário, o homem deu-se conta de algo que lhe causou nova perturbação: começara
por fazer uma chamada semanal para si próprio e com ela calava os seus instintos
recônditos; a dada altura, passara a duas, e depois a três chamadas por semana;
e agora eram diárias e a necessidade aumentava. Pior ainda que esse verdadeiro vício
era ter começado a sentir a frustração do sinal sonoro intermitente, indicando que
o número estava ocupado, por ele mesmo. Ainda e sempre, não queria falar com
nenhum outro ser vivo, mas queria que o seu número estivesse livre e respondesse.
Em suma: queria atender-se. Tentou reagir; chegou, até, a ligar para um número qualquer,
ao acaso, porém logo cortou a comunicação, receando, com toda a lógica, ouvir uma
voz humana a dizer qualquer uma das expressões mais comuns de atendimento. E
esta ideia era insuportável, pois já não se sentia, mesmo fisicamente, capaz de
contactar com alguém, salvo consigo próprio. Ao correr dos dias a frustração e o
desejo aumentaram. Por essa altura, andava ele a fazer estranhas leituras, uma
pilha de obras compradas num alfarrabista. Alguns títulos darão uma ideia: La
Clef de la Théosophie, de Helena Petrovna Blavatsky, O Pensamento-Forma,
de Max Williamson-Steiner e, sobretudo, The Reality Of The Doppelgänger,
de um misterioso autor que se escondia atrás do pseudónimo Charles C. Smith.
Foi este último livro,
sobretudo, que o influenciou, porque, honrando o título, tratava do duplo
que se diz ter qualquer indivíduo da espécie humana: o Doppelgänger,
que, em raras e assustadoras ocasiões, uma pessoa é capaz de avistar, momentaneamente
dissociado de si mesma. Pois bem, o homem concebeu uma ideia que em breve se tornou
obsessiva: levar o seu duplo a responder à chamada. Como, não o sabia, mas isso
não lhe impedia o querer. E, desenvolvendo doentiamente esta obsessão, deu-lhe as
dimensões de uma revelação fundamental. Se lograsse o seu propósito, provaria
enfim a existência de uma outra dimensão existente no espaço-tempo, um mundo paralelo
diferente daquele a que pretendia fugir de modo mais definitivo que o exílio voluntário
no alto de uma colina. A partir desta fase, ele abandonou a leitura quase por completo.
Os seus dias eram passados telefonando-se. Considerou que a disciplina do corpo
e o treino da vontade poderiam ajudá-lo; iniciou então longos jejuns e aplicou-se
a desenvolver as suas capacidades de concentração, tanto no estado de vigília como
enquanto dormia, neste último caso por intermédio de exaustivos exercícios
destinados a suscitar a ocorrência de sonhos lúcidos. Mais meses se esgotaram
neste esforço extenuante. Até que um dia, faltava já pouco para completar o
período de três anos, ao fazer o quinto telefonema desde que se levantara da cama,
ouviu o sinal de chamada. A sua primeira reacção foi desligar. Pensou, naturalmente,
ter-se enganado ao marcar o número e não quis arriscar-se a ouvir uma voz desconhecida.
Tentou recordar exactamente a sequência de algarismos usada; pareceu-lhe ser a correcta,
a do número do seu telefone. Então, trémulo, com a fronte coberta de suor,
centrou o pensamento no seu duplo e novamente marcou, devagar, o número. E o sinal
era o de chamada e ao fim de cinco toques o sinal parou e ouviu a sua própria voz
dizer: … está?» In João Aguiar, A Catedral Verde, (A Crónica de Santo Adriano), 2000, ASA
Editores, Porto, 2006, ISBN 972-41-2412-6.
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