sábado, 23 de janeiro de 2016

A Promessa Lesley Pearse. «Vivo perto de Marselha. E aquela loja ali faz-me lembrar as chapelarias francesas, disse, apontando para o outro lado da rua. A mulher olhou para a loja e sorriu»

Cortesia de wikipedia e jdact

Julho de 1914
«Abrigado da chuva num toldo, olhou para a montra em arco da pequena chapelaria, do outro lado da rua. Só de ver o nome Belle escrito em itálico com letras douradas por cima da montra sentiu o coração bater um pouco mais depressa. Havia duas senhoras no interior da loja, e a maneira como se mexiam sugeria que estavam entusiasmadas com os bonitos chapéus em exposição. Tinha realizado o seu objectivo, saber se Belle concretizara o seu sonho, mas agora que estava ali, tão perto dela, queria mais, muito mais. Uma senhora gorducha e de faces rosadas juntou-se-lhe no toldo, para fugir à intempérie. Debatia-se com um chapéu de chuva que o vento virara do avesso. Se não pára de chover em breve, vão-nos crescer barbatanas no lugar dos pés, comentou jovialmente, enquanto tentava endireitar o chapéu de chuva. Nem sei o que me deu para sair de casa com um dia assim. Estava a pensar o mesmo, respondeu ele, e tirou-lhe o chapéu de chuva das mãos para endireitar as varetas. Aqui tem, acrescentou, devolvendo-lho. Mas receio que a próxima rajada de vento torne a virá-lo. A mulher examinou-o com curiosidade. É francês, não é? Mas fala muito bem inglês. Ele sorriu. Gostava da maneira como as mulheres inglesas daquela idade não hesitavam em fazer perguntas a um perfeito desconhecido. As francesas eram muito mais reticentes. Sim, sou francês, mas aprendi inglês quando cá vivi um par de anos. Voltou de férias?, perguntou ela. Sim, para visitar velhos amigos, disse ele, porque era em parte verdade. Disseram-me que Blackheath era um lugar muito bonito, mas ainda não consegui apanhar um dia bom para conhecer a terra. Ela riu e concordou que ninguém ia de certeza querer passear pela charneca com um tempo daqueles.
Deve viver no Sul de França, continuou, estudando-lhe o rosto bronzeado com um ar avaliador. O meu irmão esteve de férias em Nice e voltou de lá negro como um tição. Ele não fazia a mínima ideia do que pudesse ser um tição, mas ficou contente por a mulher parecer disposta a conversar. Talvez conseguisse ficar a saber alguma coisa a respeito de Belle através dela. Vivo perto de Marselha. E aquela loja ali faz-me lembrar as chapelarias francesas, disse, apontando para o outro lado da rua. A mulher olhou para a loja e sorriu. Bem, dizem que a dona aprendeu o ofício em Paris, mas todas as senhoras da aldeia adoram os chapéus dela, disse, com genuína simpatia na voz. Eu própria tinha pensado passar por lá hoje, se o tempo não estivesse tão mau. É uma jovem encantadora, sempre com tempo para toda a gente. Tem um bom negócio, então? Sem dúvida, ouvi dizer que vêm cá senhoras de todo o lado comprar chapéus. Mas é melhor ir andando, ou esta noite não há jantar lá em casa. Foi um prazer conversar consigo, minha senhora, disse ele, e ajudou-a a abrir novamente o chapéu de chuva. Devia ir até lá e comprar um chapéu para a sua esposa, disse a mulher, enquanto começava a afastar-se. Não encontrará uma loja melhor, nem sequer em Regent Street.
Continuou a olhar para a loja do outro lado da rua, depois de a mulher ter desaparecido, na esperança de ver Belle, nem que fosse de relance. Não tinha uma mulher a quem comprar um bonito chapéu, nem precisava de desculpas para entrar na loja de uma velha amiga. Mas seria sensato remexer no passado? Voltou-se para examinar o seu reflexo no vidro da montra a seu lado. Em França, os amigos diziam que tinha mudado naqueles dois anos decorridos desde a última vez que vira Belle, mas ele não notava qualquer diferença. Continuava esbelto e atlético: o trabalho duro na sua pequena quinta mantinha-o em forma e tinha os ombros ainda mais largos e musculados do que antes. Mas talvez os amigos se referissem ao facto de a velha cicatriz que lhe cruzava a face se ter desvanecido um pouco e à maneira como a tranquilidade e o contentamento lhe tinham suavizado as feições angulosas, fazendo-o parecer menos perigoso. Dez anos antes, a meio da casa dos vinte, quando precisava de infligir medo às pessoas, ficava orgulhoso ao ouvir dizer que os seus olhos azuis eram gelados e que havia ameaça até na sua voz. Mas tinha-se afastado desse mundo, embora soubesse que continuava capaz de violência, quando era necessário.
Se os elogios que a senhora do guarda-chuva tecera a Belle eram representativos do que as pessoas daquela simpática aldeia pensavam dela, isso só podia significar que os aspectos mais escandalosos do seu passado não a tinham seguido até ali. O que era bom. Ele, mais do que ninguém, tinha consciência de como erros antigos, más escolhas e episódios vergonhosos eram tantas vezes difíceis de pôr para trás das costas. Agora, cumprida a sua missão, sabia que o mais sensato a fazer era voltar à estação e apanhar o comboio de regresso a Londres». In Lesley Pearse, The Promise, A Promessa, 2012, Edições ASA, 2013, ISBN 978-989-232-472-2. 

Cortesia de EASA/JDACT