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Uma viagem pela Coreia do Norte
«Eu entendia o ódio com que o guarda da alfândega me olhava. Era um oficial de farda nova e completa, botas engraxadas, patentes brilhantes, talvez sessenta anos, talvez pai de alguém da minha idade. O compartimento tinha quatro lugares. A minha mala estava sobre a cama de cima, à esquerda. Eu estava à espera no corredor do comboio, entre toda a gente que também esperava. Quando chegou a minha vez, entrei. Ele estava de pé, a segurar o meu passaporte aberto à sua frente, como se me comparasse com a fotografia mas sem olhar para ela, apenas a fixar-me, severo, de ferro. O seu olhar punha o meu corpo inteiro em tensão. Eu entendia essa tensão. Ali, significava ordem. Esse era também o motivo para o aparente ódio, ou desprezo, com que me olhava. Afinal, não era ódio, era disciplina. Eu entendia a disciplina com que o guarda da alfândega me olhava. Mas esse momento não podia durar para sempre. Houve um instante em que baixou o olhar sobre o passaporte. Sei que a minha fotografia lhe sorriu, mas não notei qualquer reacção no seu rosto. Naquela parte da Ásia, um sorriso pode exprimir algo muito diferente do que me fez sorrir quando andava a tratar do passaporte. Com frequência, um sorriso pode nascer do desconforto, do embaraço ou, até, do sofrimento. O guarda não estava sequer próximo de sorrir. De repente, nas minhas costas, entrou outro guarda. Disse qualquer coisa séria. Este era mais baixo, tinha uma farda idêntica, também oficial, mas, notava-se pela maneira como falava e como ouvia, de um posto inferior. O compartimento era pequeno para estarmos os três de pé. Eles falavam através de mim. Nesse momento, eu estava muito habituado ao som do coreano, conhecia bem a sua música mas, mesmo assim, aquelas palavras esculpidas, cheias de arestas, causavam uma sensação desagradável ao atravessar-me. Eram palavras ríspidas, espécie de arame farpado. Precisei então de olhar pela janela do comboio. Como se baixasse a cabeça sob a conversa dos dois guardas, olhei para a estação deserta de Sinuiju, onde estávamos parados havia mais de uma hora. Eram quase quatro e meia de uma tarde cinzenta, céu coberto por cinzento opaco. Não chovia. Às 10h10 em ponto, o comboio tinha partido da estação de Pyongyang. Antes dessa hora, desse minuto, os altifalantes, lá no alto, foram despejando um fundo de marchas militares sobre a multidão. Essas marchas eram como um gás que se respirava, diluía-se no ar, misturava-se com as vozes avulsas das pessoas que enchiam a estação. O comboio parado brilhava como um acontecimento solene, pintado de fresco, com carruagens verdes e outras azuis e brancas. Em todas elas, o brasão de armas da Coreia do Norte, de cores vivas e polidas: no horizonte do brasão, o monte Paektu, com uma enorme estrela vermelha no céu; por baixo, uma central hidroelétrica, com uma barragem e um poste de alta tensão; de lado, folhas de arroz e, por baixo, uma fita vermelha, com caracteres do alfabeto hangul a dizerem: República Democrática Popular da Coreia. Na chapa das carruagens, o brasão parecia de metal grosso, talvez chumbo. Às vezes, o comboio apitava como se estivesse a experimentar a buzina. Ao longo da estação, as pessoas reparavam apenas naquilo que as rodeava directamente. Usavam as suas melhores roupas, limpas e passadas com perfeição absoluta. Em grupos de quatro, cinco, seis, conversavam. Não eram indivíduos comuns, daqueles que a essa hora caminhavam pelos passeios ou avançavam de bicicleta pelas estradas de Pyongyang, estes iam viajar para a China ou vinham despedir-se de pessoas que iam viajar para a China. Faziam parte de muito poucos. Eram alguém que tinha autorização para sair do país ou conheciam alguém próximo nessa situação. Quem estivesse fora destas condições não teria sequer podido entrar na estação, teria ficado retido no primeiro controlo de documentos. Já dentro do comboio, depois de saber qual era o meu compartimento, sentei-me à janela e afastei a cortina. Havia uma pequena mesa com uma toalha de pano, boa para pousar o cotovelo. Foi o que fiz. Entre as pessoas lá fora, reparei num menino de dez ou onze anos a chorar. Camisa branca, lenço vermelho à volta do colarinho, calças acima da cintura, orelhas grandes, a chorar. Os adultos que estavam à sua volta consolavam-no. Sobretudo um homem, que talvez fosse seu pai, e que lhe pousava as mãos sobre os ombros, ou lhe fazia festas no cabelo, ou lhe limpava o rosto com um lenço. E o menino continuava a chorar, olhando para o comboio. Senti esta imagem. Há demasiado tempo que não falava com os meus filhos. Custava-me imaginar que eles pudessem estar a chorar assim. Esse era um dos motivos que me faziam ter vontade que o comboio partisse. Logo depois da fronteira, ser-me-ia devolvido o telemóvel. Naquela manhã, já quase tinha esquecido a possibilidade permanente de contacto que o telemóvel faz sentir: a segurança de uma linha invisível entre nós e aqueles de que precisamos. Não se pode entrar com telemóveis na Coreia do Norte. Todos os estrangeiros, sem excepção, têm de entregar o telemóvel às autoridades, que o guardam até à saída. Mesmo que, como no meu caso, se entre numa fronteira e se deixe o país por outra a centenas de quilómetros. Quando um estrangeiro chega à Coreia do Norte, a data e as condições da saída estão completamente previstas. Não há espaço para improvisos ou mudanças de planos. Por isso, o telemóvel e outros pertences proibidos no país serão entregues nas datas e nas localizações estipuladas à partida. Nos primeiros dias, havia o pânico repentino de o ter perdido, era agudo, vinha do nada. Depois, como se acordasse a meio de um pesadelo, lembrava-me do pequeno saco de plástico onde o deixei e onde escrevi o meu nome. Havia ocasiões também em que me parecia senti-lo a vibrar, ia com as mãos aos bolsos, procurava-o em vão durante alguns segundos até voltar a lembrar-me da chegada e do saquinho de plástico. Durante alguns dias, o fantasma do telemóvel foi como uma perna amputada onde ainda se sente comichão». In José Luís Peixoto, Dentro do Segredo, Quetzal Editores, Língua Comum, 2012, ISBN 978-989-722-060-9.
«Eu entendia o ódio com que o guarda da alfândega me olhava. Era um oficial de farda nova e completa, botas engraxadas, patentes brilhantes, talvez sessenta anos, talvez pai de alguém da minha idade. O compartimento tinha quatro lugares. A minha mala estava sobre a cama de cima, à esquerda. Eu estava à espera no corredor do comboio, entre toda a gente que também esperava. Quando chegou a minha vez, entrei. Ele estava de pé, a segurar o meu passaporte aberto à sua frente, como se me comparasse com a fotografia mas sem olhar para ela, apenas a fixar-me, severo, de ferro. O seu olhar punha o meu corpo inteiro em tensão. Eu entendia essa tensão. Ali, significava ordem. Esse era também o motivo para o aparente ódio, ou desprezo, com que me olhava. Afinal, não era ódio, era disciplina. Eu entendia a disciplina com que o guarda da alfândega me olhava. Mas esse momento não podia durar para sempre. Houve um instante em que baixou o olhar sobre o passaporte. Sei que a minha fotografia lhe sorriu, mas não notei qualquer reacção no seu rosto. Naquela parte da Ásia, um sorriso pode exprimir algo muito diferente do que me fez sorrir quando andava a tratar do passaporte. Com frequência, um sorriso pode nascer do desconforto, do embaraço ou, até, do sofrimento. O guarda não estava sequer próximo de sorrir. De repente, nas minhas costas, entrou outro guarda. Disse qualquer coisa séria. Este era mais baixo, tinha uma farda idêntica, também oficial, mas, notava-se pela maneira como falava e como ouvia, de um posto inferior. O compartimento era pequeno para estarmos os três de pé. Eles falavam através de mim. Nesse momento, eu estava muito habituado ao som do coreano, conhecia bem a sua música mas, mesmo assim, aquelas palavras esculpidas, cheias de arestas, causavam uma sensação desagradável ao atravessar-me. Eram palavras ríspidas, espécie de arame farpado. Precisei então de olhar pela janela do comboio. Como se baixasse a cabeça sob a conversa dos dois guardas, olhei para a estação deserta de Sinuiju, onde estávamos parados havia mais de uma hora. Eram quase quatro e meia de uma tarde cinzenta, céu coberto por cinzento opaco. Não chovia. Às 10h10 em ponto, o comboio tinha partido da estação de Pyongyang. Antes dessa hora, desse minuto, os altifalantes, lá no alto, foram despejando um fundo de marchas militares sobre a multidão. Essas marchas eram como um gás que se respirava, diluía-se no ar, misturava-se com as vozes avulsas das pessoas que enchiam a estação. O comboio parado brilhava como um acontecimento solene, pintado de fresco, com carruagens verdes e outras azuis e brancas. Em todas elas, o brasão de armas da Coreia do Norte, de cores vivas e polidas: no horizonte do brasão, o monte Paektu, com uma enorme estrela vermelha no céu; por baixo, uma central hidroelétrica, com uma barragem e um poste de alta tensão; de lado, folhas de arroz e, por baixo, uma fita vermelha, com caracteres do alfabeto hangul a dizerem: República Democrática Popular da Coreia. Na chapa das carruagens, o brasão parecia de metal grosso, talvez chumbo. Às vezes, o comboio apitava como se estivesse a experimentar a buzina. Ao longo da estação, as pessoas reparavam apenas naquilo que as rodeava directamente. Usavam as suas melhores roupas, limpas e passadas com perfeição absoluta. Em grupos de quatro, cinco, seis, conversavam. Não eram indivíduos comuns, daqueles que a essa hora caminhavam pelos passeios ou avançavam de bicicleta pelas estradas de Pyongyang, estes iam viajar para a China ou vinham despedir-se de pessoas que iam viajar para a China. Faziam parte de muito poucos. Eram alguém que tinha autorização para sair do país ou conheciam alguém próximo nessa situação. Quem estivesse fora destas condições não teria sequer podido entrar na estação, teria ficado retido no primeiro controlo de documentos. Já dentro do comboio, depois de saber qual era o meu compartimento, sentei-me à janela e afastei a cortina. Havia uma pequena mesa com uma toalha de pano, boa para pousar o cotovelo. Foi o que fiz. Entre as pessoas lá fora, reparei num menino de dez ou onze anos a chorar. Camisa branca, lenço vermelho à volta do colarinho, calças acima da cintura, orelhas grandes, a chorar. Os adultos que estavam à sua volta consolavam-no. Sobretudo um homem, que talvez fosse seu pai, e que lhe pousava as mãos sobre os ombros, ou lhe fazia festas no cabelo, ou lhe limpava o rosto com um lenço. E o menino continuava a chorar, olhando para o comboio. Senti esta imagem. Há demasiado tempo que não falava com os meus filhos. Custava-me imaginar que eles pudessem estar a chorar assim. Esse era um dos motivos que me faziam ter vontade que o comboio partisse. Logo depois da fronteira, ser-me-ia devolvido o telemóvel. Naquela manhã, já quase tinha esquecido a possibilidade permanente de contacto que o telemóvel faz sentir: a segurança de uma linha invisível entre nós e aqueles de que precisamos. Não se pode entrar com telemóveis na Coreia do Norte. Todos os estrangeiros, sem excepção, têm de entregar o telemóvel às autoridades, que o guardam até à saída. Mesmo que, como no meu caso, se entre numa fronteira e se deixe o país por outra a centenas de quilómetros. Quando um estrangeiro chega à Coreia do Norte, a data e as condições da saída estão completamente previstas. Não há espaço para improvisos ou mudanças de planos. Por isso, o telemóvel e outros pertences proibidos no país serão entregues nas datas e nas localizações estipuladas à partida. Nos primeiros dias, havia o pânico repentino de o ter perdido, era agudo, vinha do nada. Depois, como se acordasse a meio de um pesadelo, lembrava-me do pequeno saco de plástico onde o deixei e onde escrevi o meu nome. Havia ocasiões também em que me parecia senti-lo a vibrar, ia com as mãos aos bolsos, procurava-o em vão durante alguns segundos até voltar a lembrar-me da chegada e do saquinho de plástico. Durante alguns dias, o fantasma do telemóvel foi como uma perna amputada onde ainda se sente comichão». In José Luís Peixoto, Dentro do Segredo, Quetzal Editores, Língua Comum, 2012, ISBN 978-989-722-060-9.
Cortesia de Quetzal/JDACT