segunda-feira, 25 de janeiro de 2016

Rumor Branco. Almeida Faria. «… dispo-me só em parte, deito-me com frio, no entanto apetece-me escrever até adormecer, até ao esquecimento, descobrir a sintaxe e o som secreto. É urgente começar a construir partindo dos alicerces…»

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III Fragmento
«(…) chamaram o psiquiatra que lhe fez conversas demoradas e deve ter falado com os pais quando tentou assaltar pessoas que passavam tinha ideias destrambelhadas sobretudo se o vigiavam sofria de doenças raras queixava-se das que sabia e doutras inventadas chegaram a doer-lhe as unhas o cabelo e ficava no quarto durante dias a fio passou a ver os mortos e conversou com eles uma noite desejou morrer também e o que é mais estranho morreu mesmo ficou na cama hirto mudo de olhos fechados vieram levantá-lo não deixou não comia pitada e se com tratamentos tentavam convencê-lo de que estava vivo tinha a certeza de ter falecido e o automóvel mais não era que um carro funerário e como não tentei desiludi-lo ficou-me muito grato finalmente topava com alguém compreensivo e depois disso revi-o e o meu melhor amigo não é agora um vivo mas um morto. entorpecidos todos, encostados uns nos outros, olhando, beijando-se sem ânimo como cumprindo um rito, fumando a erva escondida, personagens de romance modernaço-pires. às vezes reúnem-se num quarto jogando stripteasepoquer e à medida que o jogo avança vão-se lentamente despindo mutuamente até ficarem nus. todos bebemos muito, alguém paga. o fumo faz chorar. Growinski pergunta a uma: dormimos hoje juntos? ela levanta-se e saem. saturado logo saio sem lhes dizer água vai. à porta um homem de gabardina com gola levantada mostra-me fotografias pornográficas, volto-lhe as costas, deambulo estonteado pelas ruas do bairro, ando sem rumo mas tenho de ir deitar-me, as pernas não as sinto de cansadas, os olhos fecham-se, o peito não tem ar, perambulo até de madrugada, até as nuvens se tornarem baças, tenho fome, puxo um cigarro a caminho de casa, agora a chuva cai, apresso-me, escorrego, a calçada ecoa aos meus passos, de luzes acesas os mercados trabalham, chegam carroças, furgonetas cheias de vegetais, cheira a relva cortada, chove cada vez mais e quando chego ao hotel vou alagado. dispo-me só em parte, deito-me com frio, no entanto apetece-me escrever até adormecer, até ao esquecimento, descobrir a sintaxe e o som secreto. é urgente começar a construir partindo dos alicerces que já estão abertos. temos de erguer a nossa morada. e quando a hora for chegada, se chegar, se antes disso a não abortar o homem velho, cobarde como é, sedeusquiser havemos de estar vivos, de ter casa habitável se a guerra do homem velho o consentir. havemos de. em planos inclinados o cansaço avança galopante até que pára com um estalar de vidros no ponto exacto do meu sono. aí vivi uma cidade morta, cadáveres pelas praças, lagos verdes de estagnadas águas, a morte ubíqua móvel, vários de nós junto da esquina, alguém arranca da viola violentas vibrações enquanto sinistros homens passam Growinski surge nu branco as costelas contando-se todos sobre ele se lançam e foge como pode sobe uma rua a pique corre em frente sempre mas começa a abrandar vai ser caçado tem um último impulso olha todos os portões procurando refúgio tudo está fechado alguém agarra em pedras outros o imitam atirando pedras Growinski tropeça olhando para trás tenta esquivar-se a um paralelepípedo que vai de encontro ao portal de ferro duma loja um estrondo um susto sem que ninguém surja ele cambaleia perde o equilíbrio quase cai fica amparado ao muro dum quintal ferido na cabeça sobre o lado esquerdo por cima da orelha já, na fonte sente o sangue quente o grupo a aproximar-se endireita-se segue muito a custo caminha arrasta-se não grita não quer dar o prazer de o ouvirem gri;... aí os pensamentos foram-lhe cortados nas costas uma pedrada o peito não dilata um vómito das vísceras até que cai de bruços e a testa bate nas lajes. Anders relata: raramente o raro rato ruivo rói a roupa remendada do rapaz romano que ruidoso rema rindo no rio de Roma, felizmente que o lobo lambeu o lodo e afogou-se no fogo sem que as numerosas maquiavélicas manicuras ameaçassem tratar-lhe da saúde ou tentassem armar-se em puras putas preparando um bom banquete e fazendo um brilharete no nobre palacete. alguns dias depois Kerstin informa-me: Growinski afogou-se ontem no Sena. o meu nome é Daniel João e ignoro quem eu seja. gostava de saber». In Almeida Faria, Rumor Branco, Editorial Caminho, 4ª edição, Lisboa, 1992, ISBN 972-21-0746-1.

Cortesia de Caminho/JDACT