quinta-feira, 21 de janeiro de 2016

Notas sobre O Triunfo do Rosário. Ana Hatherly. «… o teatro produzido por autores portugueses no período barroco deve ser a área da história da nossa literatura menos conhecida e estudada»

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Prólogo
«Do ponto de vista artístico, o reinado de João V foi suficientemente longo, rico e diversificado para permitir a confluência de correntes de pensamento tão opostas como o Barroco e o Iluminismo, que nele coincidiram em fases também opostas: o primeiro atingindo o seu declínio enquanto o segundo despontava já com a característica agressividade do novo. No que diz respeito à literatura, e apesar dos inegáveis sintomas do seu ocaso, o estilo barroco, nessa sua etapa final, ainda deu origem a algumas obras de verdadeira apoteose de todo um tesouro de saber e de experiência que se despedem numa espectacular explosão de beleza. Quando se desenha já no horizonte a iminência do inutilia truncat, num último momento do que se poderia chamar o carpe diem das formas opulentas, assiste-se ainda a um derradeiro mergulho no prazer do excesso, e a um derradeiro brado dos ditames da Contra-Reforma. O teatro de Sóror Maria do Céu, publicado durante o reinado de João V, pode bem ser considerado como uma espécie de epítome desse fim de época do Barroco português na sua vertente contrarreformista, culminância tardia dum estilo e duma maneira de conceber o mundo que iriam em breve ser destronados pela implantação das novas tendências racionalistas.
Da sua produção teatral conhecem-se actualmente nove peças, todas publicadas na primeira metade do século XVIII, mas não obstante estarem disponíveis na Biblioteca Nacional, não consta que alguma vez tenham sido representadas no nosso século, nem tão pouco comentadas (ou até talvez lidas) pela maior parte dos estudiosos da literatura portuguesa. A explicação para esse facto é simples: o teatro produzido por autores portugueses no período barroco (e não só no reinado de João V) deve ser a área da história da nossa literatura menos conhecida e estudada. Ora sabendo-se, como se sabe, que, durante esse cerca de século e meio em que hoje se situa o Barroco português na literatura, a produção dramática em vários géneros foi considerável, como explicar esse desinteresse, que quase só abre excepção para o Fidalgo Aprendiz e para as obras de António José Silva? A razão desse desinteresse é conhecida: a quase totalidade desse teatro está escrita em castelhano ou em latim. Mas, fora das obras citadas, mesmo o que se julga ser uma insignificante parte do teatro barroco escrito em português (entremezes, etc.) só há bem pouco começou a merecer a atenção de alguns estudiosos.
Quanto a nós, à justificação do desinteresse pelo nosso teatro dessa época por motivo da língua (ou línguas) em que foi predominantemente escrito, deve acrescentar-se o anátema que desde a crítica neoclássica tem pesado entre nós sobre o estilo barroco, e sobretudo o desconhecimento material de quase toda essa produção, pois dessas obras conhecem-se, na maior parte dos casos, apenas referências bibliográficas que não foram confirmadas por levantamentos sistemáticos. Portanto, enquanto não for feito um levantamento exaustivo dessa produção e não forem ultrapassadas as dificuldades com o estilo e com a língua, será difícil atingir-se um conhecimento suficientemente aprofundado e, sem ele, não se poderá fazer um juízo de conjunto que seja válido. A nossa tradução e apresentação dos cinco Autos que constituem o Triunfo do Rosário de Sóror Maria do Céu é um contributo no sentido de chamar a atenção, não só para a obra em si, mas para o teatro dos autores portugueses dessa época. Estes cinco autos, bem como as outras peças de Sóror Maria do Céu, foram publicados em Lisboa em castelhano e, por isso, constam tanto da História do Teatro Espanhol como da História do Teatro Português.
Em 1981, o teatro desta autora portuguesa foi objecto dum breve mas notável estudo do lusófilo José Ares Montes, que o comparou ao de Calderón de la Barca e ao de Sor Juana Inés de La Cruz. O Triunfo do Rosário, ponto culminante na extensa obra dessa magnífica escritora, integra-se perfeitamente no conjunto da sua produção em prosa e em verso, quer na temática quer no estilo, já que toda ela gira à volta dos problemas centrais da salvação da alma e dos meios para a atingir. Do mesmo modo que Calderón de la Barca, no seu teatro alegórico, Sóror Maria do Céu faz o seu sermão artístico, integrando-se assim no quadro mental que produziu aquela cultura dirigida que Maravall definiu como característica do período barroco. De facto, a afincada insistência posta na propagação dos princípios da Fé e na observância do culto que, destinados a salvar o Homem, fundamentam a política da Igreja contrarreformista, encontra-se na obra de Sóror Maria do Céu, como na de outros escritores seus coetâneos. Mas a obra de Sóror Maria do Céu excede em muito os limites duma arte ao serviço da religião, impondo-se, para além da mensagem edificante, como exemplo duma criatividade esplêndida servida por uma segura arte da escrita. Todos estes aspectos convergem nos cinco Autos do Triunfo do Rosário produzindo um conjunto
que não deixará de impressionar todos os que forem sensíveis à sua qualidade artística, mesmo que o não sejam já à sua mensagem ideológica. Cremos bem que estas obras, sendo paradigmáticas duma visão do mundo que já não é a nossa, de qualquer modo fazem parte duma herança cultural que nos compete estimar e defender. [...]» In Ana Hatherly, Notas sobre O Triunfo do Rosário, Lisboa, Quimera, 1992, Fundação Calouste Gulbenkian, Literatura de Conventos, Autoria Feminina, Halp 32, 2005.

Cortesia de FCG/JDACT