terça-feira, 19 de janeiro de 2016

De Volta a Istambul. A Bastarda de Istambul. Elif Shafak. «Naturalidade?, continuou a recepcionista, aridamente. Istambul! Istambul? Zeliha encolheu os ombros como se dissesse: … de onde mais poderia ser?»

Cortesia de wikipedia

Canela
«(…) Dividida entre registar imparcialmente a nova paciente e lançar um olhar de censura àquela intrepidez, a recepcionista permaneceu imóvel, um enorme caderno de notas com capa de couro aberto à sua frente. Alguns segundos se passaram antes que ela finalmente começasse a escrever. Enquanto isso, Zeliha murmurou: desculpe o atraso. Um relógio na parede indicava que chegara 46 minutos atrasada. Enquanto o seu olhar pousava nele, por um segundo Zeliha deu a impressão de vagar para longe. Foi por causa da chuva... Aquilo era um pouco injusto com a chuva, já que o tráfego, as pedras quebradas da calçada, a Câmara, o espreitador e o motorista de táxi, sem falar nas compras, também eram responsáveis pelo seu atraso, mas Zeliha decidira não trazer à baila nenhum deles. Podia ter violado a Regra de Ouro da Prudência para uma Mulher de Istambul, mas fazia questão de seguir a Regra de Bronze. A Regra de Bronze da Prudência para uma Mulher de Istambul: quando assediada na rua, é melhor esquecer o incidente assim que retomar o seu caminho. Remoê-lo o dia inteiro só arrasará ainda mais os seus nervos! Zeliha era suficientemente esperta para saber que mesmo se mencionasse o assédio agora, as outras, longe de a apoiarem, tenderiam a criticar a irmã assediada em casos como aquele. Portanto, manteve a resposta curta e a chuva continuou sendo a única culpada. A sua idade?, perguntou a recepcionista. Bem, aquela pergunta era irritante e totalmente desnecessária. Zeliha estreitou os olhos para a recepcionista como se esta fosse uma espécie de penumbra a que precisava se adaptar para ver melhor. De repente lembrou-se da triste verdade sobre si mesma: a sua idade. Como tantas mulheres acostumadas a agir além dos seus anos, perturbava-se com o facto de ser, afinal de contas, muito mais jovem do que gostaria. Dezanove anos, admitiu. Assim que as palavras deixaram a sua boca, Zeliha enrubesceu como se tivesse sido surpreendida nua na frente de toda aquela gente. Precisamos do consentimento do seu marido, é claro, continuou a recepcionista, agora sem a voz chilreante, e passou sem perder tempo a outra pergunta de cuja resposta já suspeitava. Posso saber se é casada? Com o canto do olho, Zeliha notou a loura rechonchuda à direita e a mulher de véu na cabeça à esquerda remexerem-se desconfortavelmente. Enquanto o olhar das pessoas na sala pesava com mais força sobre Zeliha, a sua careta evoluiu para um sorriso beatífico. Não que estivesse usufruindo do momento tortuoso, mas sua indiferença íntima acabara de sussurrar-lhe que não se importasse com a opinião dos outros, já que não faria nenhuma diferença no final das contas. Ultimamente decidira eliminar certas palavras de seu vocabulário, e agora que se lembrara daquela decisão, por que não começar pela palavra vergonha? Mesmo assim não teve a audácia de pronunciar alto o que todos na sala já haviam entendido. Não havia nenhum marido para consentir no aborto. Nenhum pai. Felizmente para Zeliha, o facto de não haver marido revelou-se uma vantagem nas formalidades. Aparentemente não precisava do apoio por escrito de ninguém. Os regulamentos burocráticos estavam menos interessados em auxiliar bebés nascidos fora do casamento do que os nascidos de casais casados. Um bebé sem pai em Istambul era apenas mais um bastardo, e um bastardo era apenas mais um dente mole na mandíbula da cidade pronto para cair a qualquer momento. Naturalidade?, continuou a recepcionista, aridamente. Istambul! Istambul? Zeliha encolheu os ombros como se dissesse: … de onde mais poderia ser? De que lugar a não ser dali? Pertencia àquela cidade! Não era visível em seu rosto? Afinal de contas, Zeliha considerava-se uma verdadeira filha de Istambul, e como se repreendesse a recepcionista por não ver um facto óbvio, virou-se de costas com o seu salto partido e foi-se sentar na cadeira junto à mulher de véu na cabeça. Foi somente então que notou o marido desta, sentado imóvel, quase paralisado de constrangimento. Em vez de julgar Zeliha, o homem parecia mergulhado no desconforto de ser o único varão ali, naquela zona manifestamente feminina. Por um segundo Zeliha teve pena dele. Pensou até em lhe pedir que fosse à sacada para fumar um cigarro com ela, pois tinha certeza de que ele fumava. Mas isso poderia ser interpretado erradamente. Uma mulher solteira não podia sugerir tal coisa a homens casados, e um homem casado seria hostil para com outra mulher tendo a esposa por perto. Por que era difícil ser amiga dos homens? Por que sempre tinha que ser assim? Por que não podiam simplesmente ir até à varanda, fumar um cigarro, trocar algumas palavras e depois cada um seguir o seu caminho? Zeliha permaneceu sentada silenciosamente por um longo momento, não porque estivesse morta de cansaço, o que estava, ou porque estivesse farta de toda a atenção, o que também estava, mas porque desejava estar junto da janela aberta; tinha fome dos sons da rua. A voz rouca de um vendedor ambulante vinda de fora infiltrou-se na sala: tangerinas..., tangerinas frescas e cheirosas... Óptimo, continue gritando, murmurou Zeliha para si mesma». In Elif Shafak, De Volta a Istambul, A Bastarda de Istambul, 2007, Editora Nova Fronteira, tradução de Myriam Campelo, ISBN 978-85-209-1996-5, Jacarandá Editora, 2015, ISBN 978-989-875-237-6.

Cortesia de EBF/JEditora/JDACT