domingo, 24 de janeiro de 2016

O Livro Perdido das Origens de Portugal. 1089. Emílio Miranda. «Só então abandonou o seu esconderijo, atravessou a nave apressadamente e saiu para a rua. Chamava-se Marta e não tinha ainda 20 anos. Vivia ali bem perto…»

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O arco e a flecha. Antemanhã, Dezembro de 1080
«(…) Era simultaneamente maravilhoso e caótico, repleto de aromas desconhecidos e de cores tão vivas que refulgia sobre elas o brilho intenso do So1. Havia vermelhos tão rubros que julgava impossível recriá-los fora da natureza, laranjas e amarelos tão vivos que quase cegavam e, contudo, enchiam a alma de um êxtase desconhecido e mágico. A rapariga fazia maravilhas. Era tão maleável como um junco e contorcia-se, usando as mãos, oh, Céus, a boca!, e as aduelas das pernas que o subjugavam, conduzindo-o ao profundo e quente vale onde arremetia e arremetia e arremetia… O remorso confundiu-se com o prazer. O prazer confundiu-se com a dor! Irmão Júlio. Irmão Júlio, onde estais? A voz arrancou-o à perdição e ele explodiu de pânico. Tinha cedido aos avanços da rapariga e agora via-se estendido a seu lado, no interior da igreja. Essa constatação arrancou-lhe um dolorido sentimento de remorso e culpa. Tendes de vos esconder. Depressa!, sussurrou, enquanto compunha o hábito à pressa. Onde estava, o melhor era deitar-se com o rosto encostado ao pavimento frio, como se estivesse em penitência. Quanto à mulher, viu-a escorregar pelas sombras, desaparecendo atrás do altar. Ah, estais aqui! Já corri tudo à vossa procura. Tratava-se do irmão Daniel. Ajudava o irmão Germano nas cozinhas, onde ele era às vezes chamado a realizar tarefas. Provavelmente o irmão cozinheiro mandara-o à sua procura, pensou contrafeito, desejando que a penumbra ajudasse a disfarçar a sua turbação. Perdoai me, disse. Entrei para rezar e esqueci-me das horas. Vinde ajudar-me. Sim, sim. Estais bem? Não sabia que vos entregáveis às mesmas práticas que o irmão Inocêncio.
Inocêncio era o monge mais velho e não era raro ser encontrado estendido no chão da sua cela. Muitos questionavam-se se não era ali que dormia muitas noites. Sim, estou bem. Temo ter perdido a noção do tempo. Perdoai-me. Sigo-vos de imediato, balbuciou, evasivo, erguendo-se. Por momentos, lutou contra a perturbação, alisando o hábito com as mãos trementes, após o que seguiu o companheiro, cambaleante. A rapariga esperou um pouco mais, até perceber que o silêncio tinha retornado ao interior da igreja. Só então abandonou o seu esconderijo, atravessou a nave apressadamente e saiu para a rua. Chamava-se Marta e não tinha ainda 20 anos. Vivia ali bem perto com a irmã, o cunhado e a sobrinha, arrendatários do mosteiro». In Emílio Miranda, 1089, O Livro Perdido das Origens de Portugal, Marcador Editora, 2015, ISBN 978-989-754-141-4.

Cortesia de MarcadorE/JDACT