sábado, 2 de janeiro de 2016

O Último Segredo de Da Vinci. David Gutierrez « Compreendo por que a chamam figura não pintada por mão humana, respondeu Da Vinci ainda envolvido na contemplação. Seria impossível que um homem a houvesse criado»

Cortesia de wikipedia e jdact

O enigma do Santo Sudário. 1502. Florença
«(…) Mas os Sabóia eram seus inimigos, e inimigos poderosos que não permitiriam que lhes tomassem tão apreciada relíquia. Somente a refinada astúcia do jovem Bórgia poderia traçar um plano para consegui-la. E esse plano tomou-se, no fundo, mais simples do que ele havia imaginado, já que apelava a um dos aspectos mais íntimos e acerbos da natureza humana, ao mais baixo instinto do homem: a lascívia. Os Bórgia enviariam uma mulher jovem, bonita e sem escrúpulos para seduzir Carlos, o jovem filho de Filiberto, duque de Sabóia; este, encantado pela irresistível fêmea, a um pedido seu, lhe mostraria o Sudário, cuidadosamente guardado, satisfazendo nela um desejo que seria recompensado com o prémio da carne. A mulher lhe adoçaria os lábios, obrigando-o a concessões cada vez maiores, até o momento em que subtrairia a relíquia e fugiria de Chambéry, levando-a consigo. O plano tinha dado certo. Inclusive antes do que César havia previsto. Carlos Sabóia, mesmo sendo somente um garoto, sucumbiu aos encantos da pérfida agente dos Bórgia. Deixou-se envolver, na sua ingenuidade, pelas falsas palavras de amor e permitiu que o estimado Sudário fosse roubado. Isso resultou numa reacção da famí1ia, reacção que César previra. Em primeiro lugar, manteriam o ocorrido em segredo, tanto para preservar o bom nome do rapaz como para evitar a revolta do povo, que venerava a relíquia, ainda que ela houvesse sido mostrada em pouquíssimas ocasiões. Porém, além disso, tentariam descobrir quem estava por trás do roubo, já que era improvável que uma só pessoa houvesse tramado tudo, conseguido autorizações falsas para penetrar em território saboiano e recebido as informações necessárias e precisas para realizar o seu intuito. E era justamente isso que causava agitação entre os Bórgia: necessitavam fazer depressa uma cópia do lençol, tão exacta que ninguém pudesse distingui-la do original; assim poderiam devolvê-la aos Sabóia, alegando que a ladra não havia sido presa nos seus territórios. Ficariam com a relíquia autêntica e ainda obteriam uma vantagem diplomática.
Mas César, apesar de não ser um expert, como homem do Renascimento, culto, refinado e capaz, sabia que não seria fácil pintar uma cópia idêntica da ténue imagem do Sudário. Nesse ponto entrava Leonardo, o mais admirado pintor da Itália, um homem de grande bagagem artística e científica, mestre da naturalidade, da figura integrada ao ambiente, do sfumatol, técnica aplicada na arte da pintura para designar paisagens esfumaçadas, que não são muito nítidas. Se alguém poderia consegui-la, sem dúvida esse alguém era ele. Bem-vindo, querido mestre, disse o papa Alexandre, quando Da Vinci se aproximou dele e lhe fez uma cortês reverência beijando o seu anel. Queira perdoar o meu filho. É sempre muito impulsivo. Sua Santidade não necessita pedir desculpas a vosso humilde servidor. Explicai, se achardes que deveis, o motivo de tanta urgência, respondeu Leonardo docemente, mas com uma ponta de irritação. César, um pouco afastado, observava os dois, com o seu olhar de ave de rapina, escrutador, capaz de atravessar a alma dos homens com um olhar. Pela primeira vez interveio, no seu tom habitual, mais enérgico que o de seu pai, quase ameaçador: Da Vinci, temos uma incumbência para vós. Deveis avaliá-la sem mais rodeios. Pois bem, senhor. É melhor economizar cerimónia. Mostrai-me, pois, de que se trata.
Antes de satisfazer a vossa curiosidade, dizei-me somente: que sabeis do Santo Sudário? Leonardo compreendeu imediatamente muito mais do que deu a entender com a sua resposta. Preferiu deixar-se levar por César; não era conveniente demonstrar uma sagacidade que só aquele na sua soberba acreditava possuir. Conheço o mito, disse com desinteresse. Uma tela que mostra a imagem de um corpo. É venerada como se fosse a imagem de Cristo, notou como o rosto de César se incendiava ligeiramente, ainda que este não perdesse a calma. Nada mais? Nada... Na realidade, sim. Creio que pertence à casa de Sabóia, não é isso? Embora haja cópias espalhadas por toda a cristandade. Dessa vez, César preferiu não responder às palavras de Da Vinci, cheias de uma insolência subtil o suficiente para evitar qualquer ataque directo. Dirigiu-se lentamente a um baú de prata, abriu-o e tirou dele o Sudário dobrado em quatro, modo tradicional de conservá-lo desde os tempos de Edessa (Antiga cidade da Mesopotâmia, de religião muçulmana) e que recebe o nome grego de tetradiplon.
Ao ver o conhecido rosto de Jesus, que ocupava o centro da metade superior, el Mandylion, Relíquia venerada em Bizâncio durante séculos e que é associada ao Santo Sudário, Leonardo ficou maravilhado com a delicada imagem, sem dor, solene e cheia de paz. Se ele já tivesse visto antes esse rosto, não teria conseguido disfarçar. Tinha a expressão do artista que contempla uma obra superior e compreende claramente que ela o é. Só conseguiu exclamar: … Oh! Que beleza tão serena! O papa Alexandre lançou um olhar de aquiescência ao seu filho, e ele, ainda que ferido pela ironia de Leonardo, retribuiu friamente. Era fácil perceber quem comandava verdadeiramente a família Bórgia. Vejo que também partilhais da admiração de todos os que a viram, disse César com desdém. Agora o compreendo, agora o compreendo... Leonardo estava completamente absorto devorando a Imagem com o olhar. Que é que compreendeis? perguntou-lhe então o papa. Compreendo por que a chamam figura não pintada por mão humana, respondeu Da Vinci ainda envolvido na contemplação. Seria impossível que um homem a houvesse criado. A expressão de César mudou ao ouvir essas palavras. O seu gesto altivo e vão tomou-se extremamente grave. Pois deve haver quem a copie, interveio irritado, quase gritando. Na ampla habitação, ricamente decorada, tudo silenciou. Parecia que os anjos do fresco que decorava o tecto haviam feito uma pausa no seu trabalho alegórico, observando-os desde as alturas celestiais e esperando uma solução. Os grandes espelhos, de dourada moldura, situados no centro de cada parede, reflectiam impassíveis a imagem dos três homens e criavam um ambiente onírico irreal. Logo, Leonardo disse com uma infinita franqueza: … Eu não sou o artista adequado. Não poderia imitar o Sudário. Falai com Michelangelo; talvez... Esquecei Michelangelo! Como me falais dele, que tanto vos deprecia? Sois um homem com talento, mas totalmente irreflexivo e caprichoso, vociferou César encolerizado. Não vos pago para que digais que não se pode fazer. Não vos pergunto se é possível fazer: pergunto-vos quanto tempo ireis demorar». In David Zurdo Ángel Gutierrez, O Último Segredo de Da Vinci, O enigma do Santo Sudário, Editora Novo Século, 2005, ISBN 858-891-696-7.

Cortesia de ENSéculo/JDACT