quinta-feira, 28 de janeiro de 2016

Cemitérios de Pianos. José Luís Peixoto. «Olharam para mim, e choraram mais, e sentiram no peito todo o vazio terrível, negro: profundo, profundo: que eu também teria sentido se algum dia tivesse perdido um deles»

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«Quando comecei a ficar doente, soube logo que ia morrer. Nos últimos meses da minha vida, quando ainda conseguia fazer a pé o caminho entre a nossa casa e a oficina, sentava-me numa pilha de tábuas e, sem ser capaz de ajudar nas coisas mais simples: aplainar o aro de uma porta, pregar um prego: ficava a ver o Francisco a trabalhar compenetrado, dentro de uma névoa de pontos de serradura. Em novo, também eu tinha sido assim. Nessas tardes, tanto tempo impossível depois de ter sido novo, certificava-me de que não estava a ver-me e, quando não aguentava mais, pousava a cabeça dentro das mãos. Segurava o peso imenso da minha cabeça: mundo: tapava os olhos com as mãos para sofrer dentro da escuridão, dentro de um silêncio que fingia. Depois, nas últimas semanas da minha vida, fui para o hospital. A Marta nunca me foi visitar ao hospital. Estava grávida do Hermes. Estava nos últimos meses, e a Marta, com a natureza que tem, precisou de muitos cuidados durante o tempo da gravidez. De repente, lembro-me de quando era pequena e tão feliz na trotinete que lhe comprei em segunda mão, lembro-me de quando ia para a escola, lembro-me de tanto. Enquanto eu estava no hospital à espera de morrer, a Marta estava noutro hospital, não demasiado longe, à espera que o Hermes nascesse. Como é que está o meu pai?, perguntava a Marta, deitada, mal penteada, com os lençóis da cama de hospital a taparem-lhe a barriga. Lá está na mesma, respondia alguém mentindo. Alguém que não era nem a minha mulher, nem a Maria, nem o Francisco, porque nenhum deles tinha forças para lhe mentir. Na última tarde em que estive vivo, a minha mulher, a Maria e o Francisco foram ver-me. Durante toda a doença, o Simão nunca me quis visitar. Era domingo. Eu estava apartado dos outros doentes, porque ia morrer. Tentava respirar e a minha respiração era um zumbido grosso, rouco, que enchia o quarto. Ao fundo da cama, a minha mulher chorava, engasgada pelas lágrimas, pelo rosto contorcido e pela dor: o sofrimento. Sem escolher as palavras, dizia-as dentro de uivos estendidos, esticados, longos, interrompidos apenas por tomadas sôfregas de fôlego. Eram palavras que ardiam dentro do seu corpo emagrecido, vestido com um casaco de malha, uma saia estimada, sapatos engraxados: … ai meu rico homem meu amigo que és o meu maior amigo e eu fico sem ti meu rico homem meu companheiro meu amigo tão grande tão grande. A Maria chorava e tentava abraçar a mãe, consolá-la, porque, no peito, sentiam as duas o mesmo vazio definitivo e terrível que eu também teria sentido se algum dia tivesse perdido uma delas. O Francisco olhava pela janela. Tentava não ver. Tentava não saber aquilo que sabia. Tentava ser um homem. Depois, sério, aproximou-se de mim. No tempo eterno e concreto, pousou-me festas no rosto e pousou a mão sobre a minha mão. Na mesinha-de-cabeceira, sobre o tampo de ferro cinzento, descobriu um copo de água e um pau que tinha um pedaço de algodão na ponta. Molhou o algodão na água e assentou-mo na boca seca e aberta. Mordi-o com toda a força que tinha, e o Francisco surpreendeu-se por sentir pela última vez a minha força. Retirou o algodão. Olhou-me, e chorou também, porque já não conseguia aguentar. A Maria abraçou-o e tratou-o como quando era pequeno: … não tenhas medo, menino, que a gente não te vai deixar sozinho. A gente vai tratar de ti. Toda a minha força. Usei toda a minha força e só consegui fazer um som horrível de moribundo. Queria dizer ao Francisco e à Maria que eu também nunca os deixaria sozinhos, queria dizer-lhes que eu era o maior amigo que tinham na vida, que nunca os deixaria sozinhos e que nunca deixaria de ser o seu pai, e de tratar deles, e de protegê-los. Em vez disso, usei toda a minha força e só consegui fazer um som horrível de moribundo. O som de uma voz que já não conseguia falar, o som de uma voz que, usando toda a sua força, só conseguia fazer um barulho rouco com a garganta, um som horrível, um som de moribundo. Olharam para mim, e choraram mais, e sentiram no peito todo o vazio terrível, negro: profundo, profundo: que eu também teria sentido se algum dia tivesse perdido um deles. Foram para casa da Maria e cada um ficou abandonado num canto dentro do sofrimento. Longe, protegida, a Ana tinha dois anos e estava na casa dos avós do lado do pai. Desprotegidos, a minha mulher, a Maria e o Francisco esperavam que o telefone tocasse. Esperavam que telefonassem do hospital com a notícia de que eu tinha morrido. Foi assim que a enfermeira disse: … em princípio, telefonamos ainda hoje. Telefonamos logo que o seu marido falecer. Foi assim que a enfermeira disse. Sem reparar talvez que a minha mulher já não era ninguém. Sem reparar que as palavras que lhe dizia se perdiam sem eco dentro da sua escuridão. Vagarosa, a noite. Com o vagar desmedido das coisas mundiais, a noite cobriu todos os lugares do mundo que eram todos só ali: a casa da Maria: os bonecos a imitarem porcelana sobre as prateleiras dos armários, as cobertas sobre os sofás, os cantos dobrados dos tapetes, os candeeiros a imitarem cristal, as pinturas estampadas nos quadros: e a casa de festas de anos em que, desafinados, cantávamos os parabéns, batíamos palmas desencontradas e nos ríamos: e a casa de festas de Natal em que me sentava no sofá, e se punha a toalha de mesa com desenhos de pinheiros e sinos, e se usavam os copos de pé alto. Nessa casa, cada um ficou abandonado num canto dentro do sofrimento. Às nove horas da noite, o telefone tocou. O telefone tocou durante um momento que foi muito longo, porque ninguém o queria atender, porque todos tinham medo de o atender, porque todos sabiam com uma certeza muito grande que, ao atendê-lo, iria acabar definitivamente a esperança até ao último instante, iriam acabar os quase três anos da minha doença que, sempre se soube, me ia levar à morte, me ia levar até àquele telefone que tocava e que ninguém queria atender. O telefone tocou. O som atravessou a casa e o peito da minha mulher, da Maria e do Francisco. Quem atendeu foi o marido da Maria. As suas palavras dentro de uma suspensão negra do tempo, como dentro de uma sombra do tempo: … Sim, sim. Está bem. Eu digo. Aproximou-se dos meus filhos e da minha mulher e disse-lhes. Um muro invisível entre o seu rosto e as palavras que dizia. Um muro invisível entre o mundo e as palavras que dizia. Um muro que não permitia a compreensão imediata de palavras tão simples. O Hermes tinha acabado de nascer». In José Luís Peixoto, Cemitérios de Pianos, 2006, Bertrand Editora, Quetzal Editores, 2009, ISBN 978-972-564-823-0.

Cortesia de Quetzal/JDACT