«Quando
comecei a ficar doente, soube logo que ia morrer. Nos últimos meses
da minha vida, quando ainda conseguia fazer a pé o caminho entre a nossa casa e
a oficina, sentava-me numa pilha de tábuas e, sem ser capaz de ajudar nas
coisas mais simples: aplainar o aro de uma porta, pregar um prego: ficava a ver
o Francisco a trabalhar compenetrado, dentro de uma névoa de pontos de
serradura. Em novo, também eu tinha sido assim. Nessas tardes, tanto tempo
impossível depois de ter sido novo, certificava-me de que não estava a ver-me
e, quando não aguentava mais, pousava a cabeça dentro das mãos. Segurava o peso
imenso da minha cabeça: mundo: tapava os olhos com as mãos para sofrer dentro
da escuridão, dentro de um silêncio que fingia. Depois, nas últimas semanas da
minha vida, fui para o hospital. A Marta nunca me foi visitar ao hospital.
Estava grávida do Hermes. Estava nos últimos meses, e a Marta, com a natureza
que tem, precisou de muitos cuidados durante o tempo da gravidez. De repente,
lembro-me de quando era pequena e tão feliz na trotinete que lhe comprei em segunda
mão, lembro-me de quando ia para a escola, lembro-me de tanto. Enquanto eu
estava no hospital à espera de morrer, a Marta estava noutro hospital, não
demasiado longe, à espera que o Hermes nascesse. Como é que está o meu pai?,
perguntava a Marta, deitada, mal penteada, com os lençóis da cama de hospital a
taparem-lhe a barriga. Lá está na mesma, respondia alguém mentindo. Alguém que
não era nem a minha mulher, nem a Maria, nem o Francisco, porque nenhum deles
tinha forças para lhe mentir. Na última tarde em que estive vivo, a minha
mulher, a Maria e o Francisco foram ver-me. Durante toda a doença, o Simão
nunca me quis visitar. Era domingo. Eu estava apartado dos outros doentes,
porque ia morrer. Tentava respirar e a minha respiração era um zumbido grosso,
rouco, que enchia o quarto. Ao fundo da cama, a minha mulher chorava, engasgada
pelas lágrimas, pelo rosto contorcido e pela dor: o sofrimento. Sem escolher as
palavras, dizia-as dentro de uivos estendidos, esticados, longos, interrompidos
apenas por tomadas sôfregas de fôlego. Eram palavras que ardiam dentro do seu
corpo emagrecido, vestido com um casaco de malha, uma saia estimada, sapatos
engraxados: … ai meu rico homem meu amigo que és o meu maior amigo e eu fico
sem ti meu rico homem meu companheiro meu amigo tão grande tão grande. A Maria
chorava e tentava abraçar a mãe, consolá-la, porque, no peito, sentiam as duas
o mesmo vazio definitivo e terrível que eu também teria sentido se algum dia
tivesse perdido uma delas. O Francisco olhava pela janela. Tentava não ver.
Tentava não saber aquilo que sabia. Tentava ser um homem. Depois, sério,
aproximou-se de mim. No tempo eterno e concreto, pousou-me festas no rosto e
pousou a mão sobre a minha mão. Na mesinha-de-cabeceira, sobre o tampo de ferro
cinzento, descobriu um copo de água e um pau que tinha um pedaço de algodão na
ponta. Molhou o algodão na água e assentou-mo na boca seca e aberta. Mordi-o
com toda a força que tinha, e o Francisco surpreendeu-se por sentir pela última
vez a minha força. Retirou o algodão. Olhou-me, e chorou também, porque já não
conseguia aguentar. A Maria abraçou-o e tratou-o como quando era pequeno: … não
tenhas medo, menino, que a gente não te vai deixar sozinho. A gente vai tratar
de ti. Toda a minha força. Usei toda a minha força e só consegui fazer um som
horrível de moribundo. Queria dizer ao Francisco e à Maria que eu também nunca
os deixaria sozinhos, queria dizer-lhes que eu era o maior amigo que tinham na
vida, que nunca os deixaria sozinhos e que nunca deixaria de ser o seu pai, e de
tratar deles, e de protegê-los. Em vez disso, usei toda a minha força e só
consegui fazer um som horrível de moribundo. O som de uma voz que já não
conseguia falar, o som de uma voz que, usando toda a sua força, só conseguia
fazer um barulho rouco com a garganta, um som horrível, um som de moribundo.
Olharam para mim, e choraram mais, e sentiram no peito todo o vazio terrível,
negro: profundo, profundo: que eu também teria sentido se algum dia tivesse
perdido um deles. Foram para casa da Maria e cada um ficou abandonado num canto
dentro do sofrimento. Longe, protegida, a Ana tinha dois anos e estava na casa
dos avós do lado do pai. Desprotegidos, a minha mulher, a Maria e o Francisco
esperavam que o telefone tocasse. Esperavam que telefonassem do hospital com a
notícia de que eu tinha morrido. Foi assim que a enfermeira disse: … em
princípio, telefonamos ainda hoje. Telefonamos logo que o seu marido falecer. Foi
assim que a enfermeira disse. Sem reparar talvez que a minha mulher já não era
ninguém. Sem reparar que as palavras que lhe dizia se perdiam sem eco dentro da
sua escuridão. Vagarosa, a noite. Com o vagar desmedido das coisas mundiais, a
noite cobriu todos os lugares do mundo que eram todos só ali: a casa da Maria:
os bonecos a imitarem porcelana sobre as prateleiras dos armários, as cobertas
sobre os sofás, os cantos dobrados dos tapetes, os candeeiros a imitarem
cristal, as pinturas estampadas nos quadros: e a casa de festas de anos em que,
desafinados, cantávamos os parabéns, batíamos palmas desencontradas e nos
ríamos: e a casa de festas de Natal em que me sentava no sofá, e se punha a
toalha de mesa com desenhos de pinheiros e sinos, e se usavam os copos de pé
alto. Nessa casa, cada um ficou abandonado num canto dentro do sofrimento. Às
nove horas da noite, o telefone tocou. O telefone tocou durante um momento que
foi muito longo, porque ninguém o queria atender, porque todos tinham medo de o
atender, porque todos sabiam com uma certeza muito grande que, ao atendê-lo,
iria acabar definitivamente a esperança até ao último instante, iriam acabar os
quase três anos da minha doença que, sempre se soube, me ia levar à morte, me
ia levar até àquele telefone que tocava e que ninguém queria atender. O
telefone tocou. O som atravessou a casa e o peito da minha mulher, da Maria e
do Francisco. Quem atendeu foi o marido da Maria. As suas palavras dentro de
uma suspensão negra do tempo, como dentro de uma sombra do tempo: … Sim, sim.
Está bem. Eu digo. Aproximou-se dos meus filhos e da minha mulher e disse-lhes.
Um muro invisível entre o seu rosto e as palavras que dizia. Um muro invisível
entre o mundo e as palavras que dizia. Um muro que não permitia a compreensão
imediata de palavras tão simples. O Hermes tinha acabado de nascer». In
José Luís Peixoto, Cemitérios de Pianos, 2006, Bertrand Editora, Quetzal
Editores, 2009, ISBN 978-972-564-823-0.
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