sexta-feira, 22 de janeiro de 2016

O Céu e a Terra. Carlo Coccioli. «Às vezes eu mesmo lhe rezo. Disse estas palavras de um fôlego, corado até à raiz dos cabelos enquanto eu continuava, de olhos semicerrados…»

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«Com a alma transbordante de respeito e temor, embora intimamente convencido de que o que vou fazer é necessário à minha paz interior e à vida futura a que aspiro, eu, António Zei, pároco de San Sebastiano in Campo, no fim de uma longuíssima vida e sentindo próxima a morte, junto ao meu testamento este relato da memorável entrevista que tive, em 30 de Junho de 1927, com o padre Ardito Piccardi, então meu coadjutor. Se lhe chamo memorável não é tanto pelo papel que nela tive contudo inteiramente digno da natureza miserável que me é própria, pois que ... Depois das vésperas, nessa tarde, o meu coadjutor mais novo, Marcello, disse-me que precisava falar-me. Fi-lo entrar no escritório, precisamente naquele escritório em que há tantos anos tinha recebido a ele, Ardito, então meu vigário. Marcello pareceu-me perturbado e, como lhe conheço a alma forte, admirei-me e perguntei-lhe a razão do seu estado. Respondeu-me, em breves palavras, que, ao visitar uma casa, vira uma fotografia de Ardito venerada como uma imagem sagrada; rodeada de flores e com uma lâmpada acesa em frente. Disse isto e calou-se. Tremendo um pouco mas dissimulando-o, encorajei-o. Continua. Ele continuou com uma certa frieza. Perguntara à gente da casa a razão por que tributavam a Ardito aquela devoção particular. Responderam-lhe que havia já certo tempo que as mulheres da vizinhança se reuniam naquele quarto e recitavam o rosário em honra do Santo. Marcello perguntou: que santo? Dom Ardito, respondeu uma das mulheres, com os olhos brilhantes de fé (palavras de Marcello). Perturbou-se então a ponto de não poder reagir e apenas conseguiu perguntar de novo: mas porque lhe rezam assim? Imediatamente as mulheres disseram: para obtermos a cura do filho de Rocco Bendatti que está a morrer no hospital. Uma delas ajuntou: o nosso santo deve curá-lo. Falava com incrível paixão. Então Marcello despediu-se. Procurara-me expressamente para saber o que deveria fazer em casos semelhantes. Terminou a sua narração por estas palavras: o culto de Ardito está muito espalhado, embora secretamente, não só por toda a paróquia mas também nas diferentes localidades da diocese em que passou a sua vida.
Neste ponto disse a Marcello que se sentasse e se mantivesse calmo porque notei a chama que nele ardia sob o seu habitual aspecto de frieza. Sentei-me também e, por um momento, calei-me a olhá-lo enquanto sentia uma voz dizer-me: eis o que esperavas. Finalmente perguntei-lhe: que queres que te diga? Imóvel, Marcello respondeu: monsenhor, queria saber ..., o culto de um padre ..., mesmo de um padre piedoso ..., a Igreja não se pronunciou ..., as autoridades superiores ... À medida que falava percebi que a sua frieza ia desaparecendo. Interrompi-o estendendo-lhe a mão. Ah, como estava fatigado! Uma fadiga mortal. Fechando os olhos, da cadeira em que me sentara, parecia-me voltar a vê-lo, a ele, na última entrevista, quando me bateram à porta. Dize-me o que pensas, tu mesmo, de Ardito, a quem esta gente começa a chamar santo. Marcello não me respondeu. Insisti. Continua, continua! Como se estivesses na confissão. Tremia dos pés à cabeça. De Dom Ardito?, perguntou. Sim, respondi-lhe, cada vez mais fatigado. Que pensas tu dele? Falou então. Às vezes eu mesmo lhe rezo. Disse estas palavras de um fôlego, corado até à raiz dos cabelos enquanto eu continuava, de olhos semicerrados, parecendo-me que ia cair de fadiga.
Mas as palavras sucedem-se às palavras e há qualquer coisa que, insidiosamente, ameaça desviar-me do caminho que desejo. Que será? Uma força quereria que eu não falasse desses tempos. Ora, nesse final de tarde de 30 de Junho de 1927, ouvi bater à porta e reconheci a sua maneira de bater. As vésperas tinham acabado há pouco e oficiara o outro meu coadjutor de então, o chorado Bernardino. Lembro-me que o meu coração lamentara a ausência do seu companheiro e decidira falar-lhe logo que tivesse ocasião. Conservava-me sentado na poltrona e esperava, meditando, pela hora do jantar. Se bem que as sete já tivessem soado, era ainda dia; o sol não desaparecera completamente e o céu iluminava-se com um vermelho intenso. Sentado em frente da grande janela aberta, entretinha-me a fitar os arabescos do horizonte em que se poderia ver a glória eterna do Criador. Mais do que isso, propunha-me falar disso no meu próximo sermão. O campo com as suas poucas árvores dispersas estendia-se, imenso e taciturno; até à primeira cadeia de montes, muito ao longe. De quando em quando, alguém passava pela estrada; homens e mulheres, nas bicicletas; operários e trabalhadores que vinham do campo. Ouvia-lhes as vozes e as risadas». In Carlo Coccioli, O Céu e a Terra, 1950, tradução de José Blanc Portugal, Editora Ulisseia, 1973.

Cortesia de EUlisseia/JDACT