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«Com
a alma transbordante de respeito e temor, embora intimamente convencido de que o
que vou fazer é necessário à minha paz interior e à vida futura a que aspiro, eu,
António Zei, pároco de San Sebastiano in Campo, no fim de uma longuíssima vida e
sentindo próxima a morte, junto ao meu testamento este relato da memorável entrevista
que tive, em 30 de Junho de 1927, com o padre Ardito Piccardi, então meu coadjutor.
Se lhe chamo memorável não é tanto pelo papel que nela tive contudo
inteiramente digno da natureza miserável que me é própria, pois que ... Depois das
vésperas, nessa tarde, o meu coadjutor mais novo, Marcello, disse-me que
precisava falar-me. Fi-lo entrar no escritório, precisamente naquele escritório
em que há tantos anos tinha recebido a ele, Ardito, então meu vigário. Marcello
pareceu-me perturbado e, como lhe conheço a alma forte, admirei-me e perguntei-lhe
a razão do seu estado. Respondeu-me, em breves palavras, que, ao visitar uma casa,
vira uma fotografia de Ardito venerada como uma imagem sagrada; rodeada de flores
e com uma lâmpada acesa em frente. Disse isto e calou-se. Tremendo um pouco mas
dissimulando-o, encorajei-o. Continua. Ele continuou com uma certa frieza.
Perguntara à gente da casa a razão por que tributavam a Ardito aquela devoção particular.
Responderam-lhe que havia já certo tempo que as mulheres da vizinhança se reuniam
naquele quarto e recitavam o rosário em honra do Santo. Marcello perguntou: que
santo? Dom Ardito, respondeu uma das mulheres, com os olhos brilhantes de fé (palavras
de Marcello). Perturbou-se então a ponto de não poder reagir e apenas conseguiu
perguntar de novo: mas porque lhe rezam assim? Imediatamente as mulheres disseram:
para obtermos a cura do filho de Rocco Bendatti que está a morrer no hospital. Uma
delas ajuntou: o nosso santo deve curá-lo. Falava com incrível paixão. Então Marcello
despediu-se. Procurara-me expressamente para saber o que deveria fazer em casos
semelhantes. Terminou a sua narração por estas palavras: o culto de Ardito está
muito espalhado, embora secretamente, não só por toda a paróquia mas também nas
diferentes localidades da diocese em que passou a sua vida.
Neste
ponto disse a Marcello que se sentasse e se mantivesse calmo porque notei a
chama que nele ardia sob o seu habitual aspecto de frieza. Sentei-me também e, por
um momento, calei-me a olhá-lo enquanto sentia uma voz dizer-me: eis o que esperavas.
Finalmente perguntei-lhe: que queres que te diga? Imóvel, Marcello respondeu: monsenhor,
queria saber ..., o culto de um padre ..., mesmo de um padre piedoso ..., a Igreja
não se pronunciou ..., as autoridades superiores ... À medida que falava
percebi que a sua frieza ia desaparecendo. Interrompi-o estendendo-lhe a mão. Ah,
como estava fatigado! Uma fadiga mortal. Fechando os olhos, da cadeira em que
me sentara, parecia-me voltar a vê-lo, a ele, na última entrevista, quando me bateram
à porta. Dize-me o que pensas, tu mesmo, de Ardito, a quem esta gente começa a
chamar santo. Marcello não me respondeu. Insisti. Continua, continua! Como se estivesses
na confissão. Tremia dos pés à cabeça. De Dom Ardito?, perguntou. Sim, respondi-lhe,
cada vez mais fatigado. Que pensas tu dele? Falou então. Às vezes eu mesmo lhe rezo.
Disse estas palavras de um fôlego, corado até à raiz dos cabelos enquanto eu continuava,
de olhos semicerrados, parecendo-me que ia cair de fadiga.
Mas as
palavras sucedem-se às palavras e há qualquer coisa que, insidiosamente, ameaça
desviar-me do caminho que desejo. Que será? Uma força quereria que eu não falasse
desses tempos. Ora, nesse final de tarde de 30 de Junho de 1927, ouvi bater à porta
e reconheci a sua maneira de bater. As vésperas tinham acabado há pouco e oficiara
o outro meu coadjutor de então, o chorado Bernardino. Lembro-me que o meu coração
lamentara a ausência do seu companheiro e decidira falar-lhe logo que tivesse ocasião.
Conservava-me sentado na poltrona e esperava, meditando, pela hora do jantar. Se
bem que as sete já tivessem soado, era ainda dia; o sol não desaparecera completamente
e o céu iluminava-se com um vermelho intenso. Sentado em frente da grande janela
aberta, entretinha-me a fitar os arabescos do horizonte em que se poderia ver a
glória eterna do Criador. Mais do que isso, propunha-me falar disso no meu próximo
sermão. O campo com as suas poucas árvores dispersas estendia-se, imenso e taciturno;
até à primeira cadeia de montes, muito ao longe. De quando em quando, alguém
passava pela estrada; homens e mulheres, nas bicicletas; operários e
trabalhadores que vinham do campo. Ouvia-lhes as vozes e as risadas». In
Carlo Coccioli, O Céu e a Terra, 1950, tradução de José Blanc Portugal, Editora
Ulisseia, 1973.
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