sexta-feira, 15 de janeiro de 2016

Os Passos Perdidos. Alejo Carpentier. «Caíramos na era do Homem-Vespa, do Homem-Ninguém, onde as almas não se vendiam mais ao Diabo, mas ao Contabilista ou ao Carcereiro. Compreendendo que toda a revolta era vã»

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«(…) Estava longe do aturdimento e da confusão dos estúdios, num silêncio que não era quebrado por músicas mecânicas nem vozes amplificadas. Nada me afligia e, talvez por isso mesmo, sentia-me objecto de uma vaga ameaça. Nesse quarto abandonado, onde o perfume revelava ainda uma presença, encontrava-me como que desconcertado pela possibilidade de dialogar comigo mesmo. Surpreendia-me falando-me a meia-voz. Novamente deitado, olhando o tecto, rememorava os últimos anos passados: via-os rolar do Outono à Primavera, do vento gelado ao amolecimento do asfalto, sem ter tempo de os viver, sabendo, repentinamente, pelos anúncios de um restaurante nocturno, do regresso dos patos selvagens, do bom estado das ostras, ou do reaparecimento das castanhas. Sabia, às vezes, também, da passagem das estações pelos sinos de papel vermelho em exposição nas vitrinas das lojas, ou pela chegada de camiões carregados de pinheiros cujo perfume deixava a rua como que transfigurada durante uns segundos. Havia enormes lacunas de semanas e semanas na crónica da minha vida; períodos que não me deixavam qualquer recordação que valesse a pena, alguma marca de excepcional sensação, alguma emoção duradoira; dias em que todos os gestos me causavam a obsessiva impressão de os ter feito já em circunstâncias idênticas, de me ter sentado no mesmo recanto, de ter contado a mesma história, olhando o veleiro aprisionado no cristal de um pisa-papéis. Quando se festejava o meu aniversário no meio das mesmas caras, nos mesmos lugares, com a mesma canção repetida em coro, assaltava-me invariavelmente a ideia de que ele não diferia do aniversário anterior a não ser pelo aparecimento de mais uma vela sobre um bolo cujo gosto era igual ao precedente. Subindo e descendo a encosta dos dias, com a mesma pedra aos ombros, sustinha-me por meio de um impulso adquirido à força de paroxismos, impulso esse que cederia mais tarde ou mais cedo, a uma data que talvez figurasse no calendário do ano em curso. Mas evadir-me disso, no mundo que o destino me reservara, era tão impossível como tentar reviver, na época actual, certas gestas santas ou heróicas. Caíramos na era do Homem-Vespa, do Homem-Ninguém, onde as almas não se vendiam mais ao Diabo, mas ao Contabilista ou ao Carcereiro. Compreendendo que toda a revolta era vã, após um desenraizamento que me fez viver duas adolescências, a que ficava do outro lado do mar e a que aqui se encerrara, não via onde encontrar alguma liberdade fora da desordem das minhas noites, em que tudo era um bom pretexto para me entregar aos mais reiterados excessos. A minha alma diurna estava vendida ao Contabilista, pensava eu, escarnecendo de mim próprio; mas o Contabilista ignorava que, de noite, eu empreendia estranhas viagens pelos meandros de uma cidade invisível para ele, cidade dentro da cidade, com moradas para esquecer o dia, como o Venusberg e a Casa das Constelações, quando um vicioso desejo, avivado pelo álcool, não me levava aos secretos apartamentos, onde o nome se perde ao entrarmos lá. Subjugado à minha técnica, entre relógios, cronógrafos, metrónomos, em salas sem janelas, revestidas de feltros e matérias isolantes, sempre iluminadas com luz artificial, procurava, instintivamente, quando me encontrava todas as tardes na rua já anoitecida, os prazeres que me faziam esquecer a passagem das horas. De costas para os relógios, bebia alegremente, até cair de borco ao pé de um despertador, invadido por um sono que eu procurava adensar colocando sobre os olhos uma mascarilha negra que me daria, adormecido, um ar de Fantomas em repouso... Esta cómica imagem pôs-me de bom humor. Emborquei um grande copo de xerez, decidido a aturdir a voz da razão que se levantava na minha consciência; tendo recuperado, com este vinho, o calor que o álcool me comunicara na véspera, pus-me à janela do quarto de Ruth, cujos perfumes começavam a recuar perante um persistente odor de acetona. Depois dos cabelos grisalhos entrevistos ao despertar, chegara o Verão, escoltado por sirenes de navios que se respondiam de rio a rio por cima dos edifícios. Lá no alto, entre as evanescências de uma bruma morna, eram os píncaros da cidade: as agulhas sem pátina das igrejas cristãs, a cúpula da igreja ortodoxa, as grandes clínicas onde ficavam Eminências Brancas, sob os travejamentos clássicos, demasiado escorados por causa da altura, daqueles arquitectos que, em princípios do século, perderam o sentido dos estilos. Maciça e silenciosa, a agência funerária de infinitos corredores parecia uma réplica em cinzento, com a sua sinagoga e sala de concertos ao centro, da imensa Maternidade, cuja fachada, despida de qualquer ornamento, tinha uma fileira de janelas todas iguais, que eu costumava contar aos domingos, da cama da minha mulher quando os temas de conversa escasseavam». In Alejo Carpentier, Os Passos Perdidos, 2008, tradução de António Santos, Saída de Emergência, 2010,m ISBN 978-989-637-244-6.
           
Cortesia de SEmergência/JDACT