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«(…) Estava longe do aturdimento e
da confusão dos estúdios, num silêncio que não era quebrado por músicas
mecânicas nem vozes amplificadas. Nada me afligia e, talvez por isso mesmo,
sentia-me objecto de uma vaga ameaça. Nesse quarto abandonado, onde o perfume
revelava ainda uma presença, encontrava-me como que desconcertado pela possibilidade
de dialogar comigo mesmo. Surpreendia-me falando-me a meia-voz. Novamente
deitado, olhando o tecto, rememorava os últimos anos passados: via-os rolar do
Outono à Primavera, do vento gelado ao amolecimento do asfalto, sem ter tempo
de os viver, sabendo, repentinamente, pelos anúncios de um restaurante
nocturno, do regresso dos patos selvagens, do bom estado das ostras, ou do
reaparecimento das castanhas. Sabia, às vezes, também, da passagem das estações
pelos sinos de papel vermelho em exposição nas vitrinas das lojas, ou pela
chegada de camiões carregados de pinheiros cujo perfume deixava a rua como que
transfigurada durante uns segundos. Havia enormes lacunas de semanas e semanas na
crónica da minha vida; períodos que não me deixavam qualquer recordação que
valesse a pena, alguma marca de excepcional sensação, alguma emoção duradoira;
dias em que todos os gestos me causavam a obsessiva impressão de os ter feito
já em circunstâncias idênticas, de me ter sentado no mesmo recanto, de ter
contado a mesma história, olhando o veleiro aprisionado no cristal de um
pisa-papéis. Quando se festejava o meu aniversário no meio das mesmas caras,
nos mesmos lugares, com a mesma canção repetida em coro, assaltava-me
invariavelmente a ideia de que ele não diferia do aniversário anterior a não
ser pelo aparecimento de mais uma vela sobre um bolo cujo gosto era igual ao
precedente. Subindo e descendo a encosta dos dias, com a mesma pedra aos
ombros, sustinha-me por meio de um impulso adquirido à força de paroxismos,
impulso esse que cederia mais tarde ou mais cedo, a uma data que talvez
figurasse no calendário do ano em curso. Mas evadir-me disso, no mundo que o
destino me reservara, era tão impossível como tentar reviver, na época actual, certas
gestas santas ou heróicas. Caíramos na era do Homem-Vespa, do Homem-Ninguém,
onde as almas não se vendiam mais ao Diabo, mas ao Contabilista ou ao
Carcereiro. Compreendendo que toda a revolta era vã, após um desenraizamento
que me fez viver duas adolescências, a que ficava do outro lado do mar e a que
aqui se encerrara, não via onde encontrar alguma liberdade fora da desordem das
minhas noites, em que tudo era um bom pretexto para me entregar aos mais
reiterados excessos. A minha alma diurna estava vendida ao Contabilista,
pensava eu, escarnecendo de mim próprio; mas o Contabilista ignorava que, de
noite, eu empreendia estranhas viagens pelos meandros de uma cidade invisível para
ele, cidade dentro da cidade, com moradas para esquecer o dia, como o Venusberg
e a Casa das Constelações, quando um vicioso desejo, avivado pelo álcool, não
me levava aos secretos apartamentos, onde o nome se perde ao entrarmos lá.
Subjugado à minha técnica, entre relógios, cronógrafos, metrónomos, em salas
sem janelas, revestidas de feltros e matérias isolantes, sempre iluminadas com
luz artificial, procurava, instintivamente, quando me encontrava todas as
tardes na rua já anoitecida, os prazeres que me faziam esquecer a passagem das
horas. De costas para os relógios, bebia alegremente, até cair de borco ao pé
de um despertador, invadido por um sono que eu procurava adensar colocando
sobre os olhos uma mascarilha negra que me daria, adormecido, um ar de Fantomas
em repouso... Esta cómica imagem pôs-me de bom humor. Emborquei um grande copo
de xerez, decidido a aturdir a voz da razão que se levantava na minha
consciência; tendo recuperado, com este vinho, o calor que o álcool me
comunicara na véspera, pus-me à janela do quarto de Ruth, cujos perfumes começavam
a recuar perante um persistente odor de acetona. Depois dos cabelos grisalhos
entrevistos ao despertar, chegara o Verão, escoltado por sirenes de navios que
se respondiam de rio a rio por cima dos edifícios. Lá no alto, entre as
evanescências de uma bruma morna, eram os píncaros da cidade: as agulhas sem
pátina das igrejas cristãs, a cúpula da igreja ortodoxa, as grandes clínicas
onde ficavam Eminências Brancas, sob os travejamentos clássicos, demasiado
escorados por causa da altura, daqueles arquitectos que, em princípios do
século, perderam o sentido dos estilos. Maciça e silenciosa, a agência
funerária de infinitos corredores parecia uma réplica em cinzento, com a sua
sinagoga e sala de concertos ao centro, da imensa Maternidade, cuja fachada,
despida de qualquer ornamento, tinha uma fileira de janelas todas iguais, que
eu costumava contar aos domingos, da cama da minha mulher quando os temas de
conversa escasseavam». In Alejo Carpentier, Os Passos Perdidos,
2008, tradução de António Santos, Saída de Emergência, 2010,m ISBN
978-989-637-244-6.
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