Annales D. Alfonsi Portugalensius regis
«(…)
Os Anais de D. Afonso, Rei dos Portugueses, constituem uma verdadeira
apologia do primeiro rei de Portugal e aproximam-se já do género cronístico;
exprimem bem a estreita vinculação entre Santa Cruz e o seu régio fundador:
foram provavelmente redigidos imediatamente depois da morte de Afonso Henriques,
e a seguir à destruidora invasão almóada de 1184, que ameaçou seriamente a cidade de Santarém; representam,
como outros textos historiográficos redigidos em Santa Cruz pela mesma época,
uma fonte imbuída do espírito de cruzada, que até então se exprimia raramente
em textos e documentos portugueses, apesar da guerra santa. A nossa atenção
recai sobre as duas primeiras notícias dos Anais. A primeira é a que
descreve a investidura de Afonso Henriques como cavaleiro. Tomando o seu texto
vertido para português:
- Era de 1163 [1125]. O ínclito infante D. Afonso, filho do conde Henrique e da rainha D. Teresa, neto de D. Afonso, tendo cerca de 14 anos de idade, estando na Sé de Zamora, no dia santo de Pentecostes, tomou de cima do altar as armas militares e vestiu-se e cingiu-se a si próprio diante do altar, como é costume fazerem os reis.
Este
texto aponta o nascimento de Afonso Henriques em 1111, ou até em 1110,
admitindo que ainda não tinha completado 15 anos quando se armou cavaleiro, a 17
de Maio. Contudo, se tomarmos o nascimento em 1106, como nos é referido na Vita Theotonii, tem de se
corrigir a data da investidura para 1120.
Desde esta data até 1127, Afonso
Henriques outorgou ou subscreveu, a quase totalidade dos diplomas da sua mãe.
Que eu saiba, nunca ninguém relacionou estes factos. Neste contexto, dir-se-ia
que a cerimónia correspondia a uma iniciativa de sua mãe para assegurar os
direitos do jovem Afonso à sucessão, e não em oposição a ela, como uma data
mais tardia poderia insinuar. A segunda notícia dos Anais de D. Afonso, Rei
dos Portugueses, refere-se à descrição da batalha de São Mamede:
- Na era de 1166 [ano de 1128], no mês de Junho, na festa de S. João Baptista, o ínclito infante D. Afonso, filho do conde Henrique e da rainha D. Teresa, neto do grande imperador da Hispânia, D. Afonso, com o auxílio do Senhor e por clemência divina, e também graças ao seu esforço e persistência, mais do que à vontade ou ajuda dos parentes, apoderou-se com mão forte do reino de Portugal. Com efeito, tendo morrido seu pai, o conde D. Henrique, quando ele era ainda criança de dois ou três anos, certos [indivíduos] indignos e estrangeiros pretendiam [tomar conta] do reino de Portugal; sua mãe, a rainha D. Teresa, favorecia-os, porque queria, também, por soberba, reinar em vez de seu marido, e afastar o filho do governo do reino. Não querendo de modo algum suportar uma ofensa tão vergonhosa, pois era já então de maior idade e de bom carácter, tendo reunido os seus amigos e os mais nobres de Portugal, que preferiam, de longe, ser governados por ele, do que por sua mãe ou por [pessoas] indignas e estrangeiras. Acometeu-os numa batalha no campo de S. Mamede, que é perto do castelo de Guimarães e, tendo-os vencido e esmagado, fugiram diante deles e prendeu-os. [Foi então que] se apoderou do principado e da monarquia do reino de Portugal.
Em
consonância com outras fontes, este texto coloca também a batalha de São Mamede
como o primeiro episódio da história portuguesa: o começo do reino
independente de Portugal. Sobre a idade de Afonso Henriques, deixa-nos
apenas uma referência pouco objectiva de que ia nos dois ou três anos quando o
pai morreu, mas coerente com a imprecisão subjacente aos cerca de 14 anos de
idade da notícia precedente que, lembramos, foi escrita pela mesma mão.
Sendo assim, não me parece que esta notícia traga algum esclarecimento
adicional sobre o ano de nascimento de Afonso Henriques, reflectindo antes a
dificuldade do autor relativamente ao ano e mês em que morreu o conde Henrique.
Merece a pena referir que Alexandre Herculano tomou a primeira notícia da
investidura como cavaleiro em 1125,
com catorze anos feitos, conciliando-a com a segunda notícia de que tinha dois
para três anos quando o pai morreu. Como Herculano admitiu a morte do conde
Henrique em 1114, apontou o
nascimento em 1111 (De acordo com
o fac-simile do cartaz das Festas Gualterianas de Guimarães, realizadas
em 1911, apresentado por B. Fonte (2009), foi com a data proposta por Herculano
que se comemoraram os 800 anos do nascimento em 1911). Mas, como se veio a
considerar que o conde Henrique já se encontrava falecido dois anos antes, em 22
de Maio de 1112, creio que foi
isso que levou também a deduzir dois anos à data de nascimento proposta por
Herculano, fixando-a actualmente em 1109.
Contudo, o ano que melhor concilia as duas notícias é o de 1110, o mesmo proposto no De expugnatione Scallabis, escrito
pela mesma altura. Não é impossível que a tradição do nascimento do nosso
primeiro rei em 1109 resulte do
mesmo equívoco que levou a atribuir a morte de S. Teotónio a uma sexta-feira». In
Abel Estefânio, A Data de Nascimento de Afonso I, Medievalista, nº 8, 2010, Instituto de Estudos Medievais, direcção
de José Mattoso, ISSN 1646-740X.
Cortesia
de Medievalista/JDACT