«(…) As casas ao fundo do beco
oferecem um certo grau de protecção durante os ataques periódicos dos
muçulmanos, explicou Cyrus, alarmando-me mais ainda. Agarrei-me ao braço dele e
interroguei-me sobre o significado dos pedaços de tecido que via em alguns
casacos. Os judeus têm de usar distintivos, não se vá dar o caso de os
muçulmanos entrarem em contacto connosco e conspurcarem-se. Tu não usas, disse
eu. Recuso-me a obedecer, retorquiu ele. E logo tu, um judeu, és o joalheiro
privado do xá? Visto ser o único gemólogo persa com um diploma francês, a corte
necessita de mim. E tenho contactos valiosos com os mercados europeus de
diamantes. Antes que eu pudesse mostrar-me ainda mais preocupada, Cyrus
conduziu-me pela mão à presença da minha futura sogra, Yaghout. Informada da
nossa chegada pelo pregoeiro do bairro, esperava-nos à porta. Usava o tipo de
calças, túnica e saia de ballet, que o pai do actual xá tanto admirara no
ballet de Paris, e que, mais tarde, as mulheres do seu harém popularizaram. Se
ao menos a mãe de Cyrus soubesse que a minha avó servira o actual xá aquando da
sua última visita a Paris... Madar, esta é a minha noiva, anunciou Cyrus,
beijando-a na testa. Pesaram, meu filho!, exclamou ela, ignorando a mão que
eu lhe estendia. Estremeci face ao seu olhar de reprovação, que deslizou ao
longo do meu corpo e acabou por pousar nos meus caracóis vermelhos. Simulando
uma reacção alérgica, Yaghout pôs-se a espirrar violentamente, e só mais tarde
compreendi ser eu a causa da alergia. No momento em que entrámos em casa, ela
segurou uma Bíblia sobre a cabeça de Cyrus. Com a outra mão, balançou uma cesta
de arame onde havia um pequeno forno alimentado a carvão. Senti uma vontade enorme
de abrir todos os poros da minha pele e libertar o meu perfume, usando-o como
antídoto contra o cheiro penetrante da arruda selvagem que ela utilizava
para se proteger do mau-olhado.
Cyrus puxou-me para os seus braços.
Bem-vinda à Pérsia, jounam. Yaghout girou nos calcanhares e,
intempestiva, saiu para o jardim. Virei-me a tempo de a ver deitar o queimador
num pequeno lago. As brasas moribundas assobiaram em contacto com a água. Subitamente,
senti saudades de Paris. Senti saudades de Françoise e de madame Gabrielle.
Cheguei mesmo a sentir saudades do séquito de espíritos da minha avó, que
vagueava pelo Château Gabrielle e pelo Vale das Civetas. Durante as duas
semanas em que vivi com Yaghout, esforcei-me por lhe agradar. Exibi o farsi que
aprendera com Alphonse, o mordomo persa que tínhamos em França. Fiz chá e cortei
ervas aromáticas para misturar com o arroz. Preparei ghormeh sabzi, um
guisado de carneiro aromatizado com ervas e servido com feijões encarnados e
limões secos. Mas, apesar da infinita teimosia dela, recusei-me a usal o chador.
As séries de espirros que a minha
presença provocava, o gorgolejar do seu cachimbo ghalian, as pétalas de rosa a
estremecer na espuma da água, sem esquecer o fumo que lhe saía das narinas, tudo
isto me parecia pouco educado e assustador. Quanto tempo esperavam que eu
vivesse com esta mulher? Quando ela começou a colocar comprimidos debaixo da
língua para evitar uma crise cardíaca iminente, compreendi que era chegada a
hora de partir. Nada do que Cyrus me dissera, e por certo que nem uma só das
minhas fantasias, me preparara para uma Yaghout de buço e olhos sombrios. Ela é
virgem?, perguntou certa manhã a minha futura sogra ao filho. Não me olhes
assim, pesaram, e reconsidera antes a tua decisão de casar com ela. Caso
aquela mulher não consiga arranjar um lençol manchado de sangue com a
assinatura nos quatro cantos do rabino Shlomo, o Penitente, morrerás para
mim. Nesse caso, podes começar a dar-me como morto agora mesmo!, ripostou
Cyrus. Quando ele me agarrou o braço e me arrastou para a porta, já eu estava
atrasada para o pequeno-almoço, ainda ocupada a domar o meu matagal de cabelos
encaracolados. Juntos, atravessámos o jardim poeirento com as suas velhas
amoreiras e nogueiras, as galinhas escanzeladas e os galos barulhentos, e
deixámos para trás o anexo, qual campa a céu aberto». In Dora Levy Mossanen, A Cortesã,
2005, tradução de Lucília Rodrigues, Difel, 2006/2007, ISBN 978-972-290-860-3.
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