«(…) Não é possível saber se os rumores sobre a primeira noite de
casados dos jovens príncipes chegaram a Almeirim, onde a rainha Leonor e as
suas filhas se encontravam em Setembro de 1440.
É possível que algum cortesão tivesse comentado a importância alcançada em
Castela pelo primogénito de uma linhagem lusa que tivera um papel muito destacado
(por vezes trágico) a respeito dos herdeiros da coroa portuguesa.
Um bisavô de Juan Pacheco fora
um dos assassinos de Inês de Castro, além de ter sido quem, em 1373, aconselhou o rei castelhano, bisavô
da rainha Leonor a cercar Lisboa pelo lado do Monte Olivete para tentar
desgastar a população por falta de abastecimento e fome. Em Outubro de 1440 chegou a Santarém uma comitiva
castelhana para protestar contra o tratamento que os cunhados davam à rainha Leonor,
e é provável que alguns dos seus membros tenham contado imediatamente aos
servidores da rainha, quando a foram saudar, a sua versão sobre o ocorrido na
primeira noite de casamento do príncipe Enrique. Provavelmente, D. Leonor, uma
mulher para quem os rumores da corte só interessavam quando tinham que ver com
questões relacionadas com os seus interesses políticos, não lhes terá dado
importância. Sobretudo porque um dos embaixadores acabou por informar o regente
de que a missão não vinha por vontade do rei castelhano, mas pela dos infantes
de Aragão. Segundo Rui de Pina, o infante Pedro soubera, por meio dos espiões
que tinha na casa de Leonor, que os selos de algumas das cartas dos
embaixadores castelhanos tinham sido lacrados em Almeirim, descobrindo assim
que a paz aconselhada pelo Magnânimo fora
fingida. Algo que, com pouca prudência, a rainha comunicou por carta ao conde
de Barcelos, explicando-lhe a dissimulação
com que se fizera o acordo entre ela e o regente.
O conde de Barcelos aconselhou-a a ir para o Crato porque aí podia contar
com a segurança proporcionada pela fortaleza em poder do prior, fiel partidário
do falecido rei Duarte. Por outro lado, o conde prometeu que a ajudaria a
regressar de lá com o apoio das suas tropas. É possível que a rainha tenha enviado
ao Crato como mensageiro um parente do prior e marido de uma castelhana de
linhagem Mendoza, que então ocupava o cargo de covilheira da rainha. O certo é que um neto deste casal, o
humanista Damião de Góis, guarda-mor da Torre do Tombo em 1548, proporcionaria, através de uma crónica, informações sobre Joana
de uma sinceridade rara na sua época e que não aparecem em nenhuma outra crónica.
O prior do Crato, homem de idade avançada e grande experiência, respondeu à
rainha que punha a fazenda, a honra e a vida ao seu serviço. E, no Outono de 1440, enviou um dos seus filhos
naturais, primeiro a Santarém, para dar explicações ao regente, e depois a
Almeirim, para beijar a mão da
rainha; na realidade, para ajudá-la a preparar a fuga. Membro de uma ordem
militar que exigia o celibato, este jovem começaria em Almeirim uma relação
sentimental com uma servidora de D. Leonor, da qual nasceria uma filha que
viria a ser donzela de Joana em Castela.
No dia estabelecido para a fuga, D. Leonor ordenou que fossem disponibilizados
cavalos e apetrechos, dizendo que pensava ir prestar homenagem fúnebre ao seu
marido no mosteiro da Batalha. Na noite de 31 de Outubro de 1440,véspera de Todos os Santos, a
rainha administrou e recebeu no seu estrado como todas as noites e às nove
retirou-se para os aposentos. Uma hora depois, escapava por uma porta secreta
da muralha. Com ela fugiam la Infanta
Dona Joana de mama, e sua ama que a criava, assim como um pequeno grupo de
servidores, homens e mulheres, de provadíssima lealdade. Fazia parte dele o seu
escrivão de puridade; a sua covilheira castelhana e uma donzela aragonesa que chegara a Portugal
com Leonor quando esta se casou. Também a acompanhavam o capelão-mor da rainha
e os seus jovens sobrinhos, futuros oficiais da casa da rainha Joana em
Castela, e, evidentemente, Afonso Sequeira, o colaço da infanta. Nos dias
seguintes, os servidores de D. Leonor que não tinham sido detidos por ordem do regente
Pedro fugiram de Almeirim e reuniram-se com a sua senhora na fortaleza do
Crato. Entre eles encontrava-se um jovem escudeiro da fugitiva, pertencente à
linhagem de Sousa, que muitos anos mais tarde se converteria no oficial mais
importante da casa da sua filha como rainha de Castela.
A rainha fora obrigada a deixar em Almeirim a infanta Leonor, por esta
se encontrar doente, e a infanta Catarina. Segundo Rui de Pina, a viúva do rei
Duarte enviou, a partir do Crato e para todo o reino, cartas que já levava
escritas, nas quais se desculpava por ter tomado esta decisão e acusava o
regente de a ter obrigado a fugir. Mas esta justificação teria o efeito contrário
ao desejado. Sobretudo nos sectores populares, apoiantes do duque de Coimbra,
levando-os a manifestar-se abertamente contra a rainha. De acordo com o mesmo
cronista mandou logo o Regente em nome
d'El-Rei caminho do Crato Diogo Fernandes d'Almeida, védor da fazenda, pedindo
à Rainha, sua madre, com mui brandas razões e mui fortes seguranças que se
tornasse, e que elle e os Ynfantes iriam por ella, e se não o quizesse fazer
que ao menos entregasse a Ynfanta Dona Joana. Na véspera do Natal de 1440, os infantes de Portugal
reuniram-se com os filhos do conde de Barcelos, numa propriedade próxima de Avis,
para decidir que medida tomar a respeito de D. Leonor, que não parecia obedecer
aos conselhos do seu irmão Alfonso V de Aragão nem aos do papa, que lhe
escrevera várias cartas aconselhando-a a ter paciência. Depois de muito
debater, acordaram solicitar formalmente à rainha que regressasse às suas
terras. Em troca, prometiam-lhe que seria servida e honrada como merecia, por
ser mulher e mãe de reis. Caso ela não aceitasse, o Crato seria cercado até ser
tomado pela força, respeitando sempre qualquer casa ou torre onde a rainha e a
infanta Joana se refugiassem». In A Rainha Adúltera, Joana de Portugal e o
Enigma da Excelente Senhora, Crónica de uma difamação anunciada, Marsilio
Cassotti, A Esfera dos Livros, Lisboa, 2012, ISBN 978-989-626-405-5.
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