quinta-feira, 24 de outubro de 2013

Os Nossos Escritores. Jaime Magalhães Lima. José Agostinho. «Não tem, não pode ter, meios termos: ou turíbulo ou chicote. Não arranca das trevas um desconhecido de mérito, mas arrasa de lentejoulas muitos nulos. E, entretanto, todos se queixam de que a nossa literatura e a nossa arte tombam em decadência»


Cortesia de wikipedia

«Uma das monstruosidades do passado, e ainda com predomínio no presente, é a escravidão da consciência. Horror e vergonha da Humanidade, foi Meza Censória, depois de ser cátedra e púlpito, fogueira e potro, forca e anátema. Julgou sempre sem autoridade de juiz, porque foi sempre verdugo. Nunca pode ser lei pura, porque foi sempre suplício e ignomínia, patíbulo. Para cometer o seu crime com prestígio, com absolvição plena dos seus rancores, abrigou-se em todos os refúgios sagrados e vestiu todas as túnicas luminosas: a túnica de Jesus-Cristo, a pretexta de Catão, o manto de Sócrates. Tudo lhe serviu para armadura, escudo, auréola e máscara. Entre nós, como em toda a Europa, esse monstro alapardou-se na rigidez da ortodoxia intolerante que apedrejou Fénelon, e mordeu o calcanhar branco de S. Francisco d'Assis. Deu a Torquemada o báculo do pescador Pedro e a Escobar o principado de S. Francisco Xavier. Ululou, queimou, deturpou, assolou, enxertando a alma negra de Átila na haste aromal do Evangelho, voz e guia da Humanidade em jornada.
Veio, entretanto, a Liberdade no constitucionalismo. Como vitoria? Infelizmente mais como vingança do que como evolução. As verdadeiras vitórias não se vingam: destroem, mas construindo. A liberdade do constitucionalismo foi principalmente represália e assim a velha intolerância não se extinguiu: deslocou-se, dissimulada, cavilosa. Extinguiram a Meza Censoria? Decerto, mas não se extinguiu o espírito do faciosismo, meza censoria latente e múltipla que perpetra os mesmos crimes contra a liberdade do pensamento e do sentimento. O regime constitucional opôs à intolerância a intolerância, ao ódio o ódio, ao despotismo sanguinolento, odioso em suplícios físicos, a tirania da opinião preconceituosa sobre todo o trabalho mental.
E esta com um invólucro repugnante: a hipocrisia. Todos são livres de opinião! Clamaram os caudilhos de Mouzinho da Silveira. Entretanto, quem ficava deveras livre era só a opinião dos dirigentes do regime. Divergir corajosamente dela era o escândalo. Se a obra intelectual não ficava suprimida de direito, ficava-o de facto, tão excomungada, tão deprimida, que ninguém a lia. Esta tirania mental e moral criou entre nós a crítica, como da Monarquia a acaba de receber a jovem República. Os actuais governantes já a devem ter lobrigado no seu antro, onde esperamos que a hão de sanear. Diz-se liberal e é absolutista. Diz-se justiceira e é pessoalista e sectária. Apregoa independência, e acarinha apenas vaidades individuais. Guia-se pela influência dos habilidosos e audazes. Flagela os cabotinos e, afinal, para alcandorar muitos deles, ou desdenha dos honestos, ou beneficia estes com epítetos de misericórdia, que são afrontas flagrantes, ignóbeis.
Não tem, não pode ter, meios termos: ou turíbulo ou chicote. Não arranca das trevas um desconhecido de mérito, mas arrasa de lentejoulas muitos nulos. E, entretanto, todos se queixam de que a nossa literatura e a nossa arte tombam em decadência. Mas, porque não, se Portugal se tem regido sempre pela pior tirania, pela adulteração da Liberdade? Como querem Arte livre sem crítica livre? Como querem os escritores e os editores que o público leia, se os poucos não analfabetos do país, em vez de lerem, tudo para discutir tudo, ainda têm diante dos olhos o seu Index conforme o partidarismo apaixonado que os domina? Quem há de trabalhar num meio assim? O verdadeiro trabalhador? Mas esse não procura nunca os críticos vulgares. Procurá-los é confessar baixeza, é ter até de oferecer deprimidamente jantares ou ceias, ou jóias, a troco de elogios, é renegar implicitamente toda a ciência e filosofia moderna, toda a razão e toda a fé e sentimento; é aceitar um qualquer partidarismo intolerante; é pôr a Arte debaixo da tutela de qualquer efémero fetiche; é condenar-se a ser escravo do erro, se ele domina, ou da paixão se ela triunfa. Ficam, pois, só vitoriosos e livres os maus trabalhadores, os que não têm sinceridade, os que não têm princípios. Em vão a Ciência e a Razão lhes dizem que a Republica, por exemplo, em todas as suas demolições é compatível com todos os grandes princípios, até com os dum elevado espiritualismo; que se pode ser cristão e ser democrata, obrigando o Estado a separar-se da Igreja dentro da justiça pura; clamando ao actual governo que não pare, que erga o verdadeiro edifício da liberdade, que vá, pouco a pouco, demolindo e construindo, dando golpes enérgicos á Burguesia da agiotagem e erguendo os humildes, o Povo, dentro da consciência desoprimida». In José Agostinho, Os Nossos Escritores, Jaime Magalhães Lima, Casa Editora de António Figueirinhas, Livraria Portuense de Lopes e Cª., Porto, 1911.

Cortesia de CEAFigueirinhas/JDACT