«Uma
das monstruosidades do passado, e ainda com predomínio no presente, é a escravidão
da consciência. Horror e vergonha da Humanidade, foi Meza Censória, depois de ser cátedra e púlpito, fogueira e
potro, forca e anátema. Julgou sempre sem autoridade de juiz, porque foi sempre
verdugo. Nunca pode ser lei pura, porque foi sempre suplício e ignomínia, patíbulo.
Para cometer o seu crime com prestígio, com absolvição plena dos seus rancores,
abrigou-se em todos os refúgios sagrados e vestiu todas as túnicas luminosas: a
túnica de Jesus-Cristo, a pretexta de Catão, o manto de Sócrates. Tudo lhe
serviu para armadura, escudo, auréola e máscara. Entre nós, como em toda a
Europa, esse monstro alapardou-se na rigidez da ortodoxia intolerante que
apedrejou Fénelon, e mordeu o calcanhar branco de S. Francisco d'Assis. Deu a
Torquemada o báculo do pescador Pedro e a Escobar o principado de S. Francisco
Xavier. Ululou, queimou, deturpou, assolou, enxertando a alma negra de Átila na
haste aromal do Evangelho, voz e guia da Humanidade em jornada.
Veio,
entretanto, a Liberdade no constitucionalismo. Como vitoria? Infelizmente mais como vingança do que como
evolução. As verdadeiras vitórias não se vingam: destroem, mas construindo. A
liberdade do constitucionalismo foi principalmente represália e assim a velha
intolerância não se extinguiu: deslocou-se, dissimulada, cavilosa. Extinguiram a Meza Censoria? Decerto, mas não
se extinguiu o espírito do faciosismo, meza censoria latente e múltipla que
perpetra os mesmos crimes contra a liberdade do pensamento e do sentimento.
O regime constitucional opôs à intolerância a intolerância, ao ódio o ódio, ao
despotismo sanguinolento, odioso em suplícios físicos, a tirania da opinião
preconceituosa sobre todo o trabalho mental.
E
esta com um invólucro repugnante: a hipocrisia. Todos são livres de opinião! Clamaram
os caudilhos de Mouzinho da Silveira. Entretanto, quem ficava deveras livre era
só a opinião dos dirigentes do regime. Divergir corajosamente dela era o escândalo.
Se a obra intelectual não ficava suprimida de direito, ficava-o de facto, tão
excomungada, tão deprimida, que ninguém a lia. Esta tirania mental e moral criou
entre nós a crítica, como da Monarquia a acaba de receber a jovem República. Os
actuais governantes já a devem ter lobrigado no seu antro, onde esperamos que a
hão de sanear. Diz-se liberal e é absolutista. Diz-se justiceira e é
pessoalista e sectária. Apregoa independência, e acarinha apenas vaidades individuais.
Guia-se pela influência dos habilidosos e audazes. Flagela os cabotinos e,
afinal, para alcandorar muitos deles, ou desdenha dos honestos, ou beneficia
estes com epítetos de misericórdia, que são afrontas flagrantes, ignóbeis.
Não
tem, não pode ter, meios termos: ou turíbulo ou chicote. Não arranca das
trevas um desconhecido de mérito, mas arrasa de lentejoulas muitos nulos. E, entretanto,
todos se queixam de que a nossa literatura e a nossa arte tombam em decadência.
Mas, porque não, se Portugal se tem regido sempre pela pior tirania, pela adulteração da Liberdade? Como querem Arte livre sem crítica livre?
Como querem os escritores e os editores que o público leia, se os poucos não
analfabetos do país, em vez de lerem, tudo
para discutir tudo, ainda têm diante dos olhos o seu Index conforme o partidarismo apaixonado que os domina? Quem há de trabalhar num meio assim? O verdadeiro
trabalhador? Mas esse não procura nunca os críticos vulgares.
Procurá-los é confessar baixeza, é ter até de oferecer deprimidamente jantares
ou ceias, ou jóias, a troco de elogios, é renegar implicitamente toda a ciência
e filosofia moderna, toda a razão e toda a fé e sentimento; é aceitar um qualquer
partidarismo intolerante; é pôr a Arte debaixo da tutela de qualquer efémero
fetiche; é condenar-se a ser escravo do erro, se ele domina, ou da paixão se
ela triunfa. Ficam, pois, só vitoriosos e livres os maus trabalhadores, os que
não têm sinceridade, os que não têm princípios. Em vão a Ciência e a Razão lhes
dizem que a Republica, por exemplo, em todas as suas demolições é compatível
com todos os grandes princípios, até com os dum elevado espiritualismo; que se
pode ser cristão e ser democrata, obrigando o Estado a separar-se da Igreja
dentro da justiça pura; clamando ao actual governo que não pare, que erga o
verdadeiro edifício da liberdade, que vá, pouco a pouco, demolindo e
construindo, dando golpes enérgicos á Burguesia da agiotagem e erguendo os
humildes, o Povo, dentro da consciência desoprimida». In José Agostinho, Os Nossos
Escritores, Jaime Magalhães Lima, Casa Editora de António Figueirinhas,
Livraria Portuense de Lopes e Cª., Porto, 1911.
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