Continua a alastrar o suborno. Aos vendidos chamava-se cristãos
«(…) O monarca espanhol escreveu o seguinte à margem deste documento: vejo esta o conde de Portalegre, e &
resposta que será conveniente lhe deis. E João da Silva, a seguir à
recomendação do soberano, escreveu: são
muito bons estes de Vila Real. Responda-se a D. Jorge com muita aprovação do que
vai fazendo, pedindo-lhe continue, e restitua-se estes papéis como é de razão.
Era assim que, na sombra, se ia tecendo a rede de corrupção que havia de embaraçar
os movimentos dos genuínos Portuguesos, quando estes, apoiando António, prior do Crato, quiseram lutar
contra os invasores. Na sua insistente tarefa de exercer toda a espécie de pressões,
para obterem o triunfo da causa de Filipe II, os embaixadores caste1hanos, mal
terminaram as exéquias do cardeal-rei Henrique, apresentaram-se a pedir aos
Governadores uma audiência, a fim de se elucidarem sobre os negócios da
sucessão. Os regentes evitaram esse encontro, alegando que a preocupação de
problemas de mais urgência os impedia de lhes dar informações seguras sobre o
assunto. Os embaixadores usaram então dos meios secretos que lhes eram
peculiares. E, assim, tiveram logo conhecimento de que o cardeal, no seu testamento
de 27 de Janeiro de 1580, não
indicara a pessoa que lhe havia de suceder, e se limitara a recomendar aos seus
súbditos que prestassem vassalagem ao pretendente que os juízes por ele nomeados
reconhecessem como herdeiro do trono.
O padre Leão Henriqures, confessor do monarca, e Miguel Moura, secretário,
tiveram a incumbência, designada no testamento, de escolher e queimar todos os
papéis do cardeal-rei que julgassem conveniente suprimir. Ninguém sabe até que
ponto esta destruição teria prejudicado a história desse período. Não se atrevera
o embaixador-espião a abordar Leão Henriques, que, resistindo às suas
investidas corruptoras, permanecera até então desafecto a Castela. Mas Miguel
Moura, rico e sem filhos, embora não mostrasse interesse em deixar-se subornar,
acabara por tornar-se simpaticamente inofensivo, pela exploração hábil que Cristóvão
Moura soubera fazer do seu fanatismo religioso. Após a morte do cardeal-rei,
Miguel Moura retirou-se de Almeirim, por ter tido notícia de que sua esposa se
encontrava muito doente. Antes dele partir, porém, teve Cristóvão tempo de o
interrogar acerca dos documentos queimados. Miguel de Moura caiu, ou simulou
cair, em indiscrições, entre as quais a de que o testamento nenhuma alusão
fazia a qualquer pacto secretamente firmado.
A propósito deste episódio, escreve Rebelo da Silva: a indiscrição nada inocente de Miguel Moura
ministrou à embaixada de Castela os fios para se não perder no Labirinto das
complicações desta época; e o caso que depois fez o rei católico do velho secretário,
a modo singular por que o honrou, mostram que não quis ser esquecido nem
ingrato. Miguel Moura era desses homens que se ufanam de fugir às ocasiões perigosas;
que navegam acautelados em todos os mares, sempre com os olhos fitos nos
escolhos; que, trazendo constantemente o desinteresse na boca e a abnegação nas
palavras, nunca se descuidam de assoalhar os próprios merecimentos, para, sem
as pedirem, lhes baterem à porta as mercês com o agrado dos soberanos. Esta
espécie de cifra, que o brilhante historiador nos revela, esclarecrendo-nos
acerca do carácter de Miguel Moura, oferece-nos a chave do enigma que constituía
a extrema benevolência de Filipe II para com o patriota amigo do falecido
monarca.
Naquela época de intriga subterrânea, de duplicidade de atitudes, de
jogo de escondidas atrás de uma nação em almoeda, certos acontecimentos têm de
ser vistos por dois lados: o direito e
o avesso. E muitas vezes o avesso apresenta muito mais interesse
do que o direito. É o caso daquela recomendação que as Cortes fizeram
aos Governadores de mandarem uma embaixada extraordinária a Madrid, com o fim de
persuadir Filipe II de desistir de qualquer intento de apoderar-se do trono
português pelas arrnas, pedindo-lhe que se submetesse à sentença da causa da sucessão,
que seria guardada com imparcial justiça. Neste ponto apressaram-se os regentes
a obedecer às Cortes e dessa missão encarregaram a embaixada extraordinária,
constituída pelo bispo de Coimbra e Manuel Melo. Também apresentaram pêsames ao
rei católico pela morte de seu tio, cardeal Henrique, a quem o sobrinho
castelhano dizia muito estimar». In Mário Domingues, O Prior do Crato Contra
Filipe II, Evocação Histórica, edição da L. Romano Torres, Lisboa, 1965.
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