segunda-feira, 21 de outubro de 2013

O Anel Misterioso. Cenas da Guerra Peninsular. 1873. Alberto Pimentel. «O teu cão sente e não fala; eu falarei por ele. Sofres decerto muito e precisas consolação. Eu sou também muito infeliz, muito mais do que tu, porque não tenho guitarra nem cão. Deixa-me pois compartir do teu cão e da tua guitarra, que eu te darei o que tu não tens…»

Cortesia de wikipedia e jdact

«A obra foi inspirada num mendigo que vagueava pelas ruas do Porto, conhecido como o Desgraça, e que o autor identifica como tendo sido o militar português José Maria Graça Strech. A narrativa centra-se no período da Guerra Peninsular, tendo como ponto de partida a tomada do Porto na segunda invasão francesa, e a tragédia da Ponte das Barcas. Durante a tomada do Porto pelo exército francês, na segunda invasão francesa, o capitão do exército português Graça Strech é mortalmente ferido, e o seu filho, José Maria, acorre à casa da família com a intenção de socorrer a sua irmã Augusta, suas mãe e avó. Entretanto o exército invasor, no saque que se seguiu a vitória sobre os militares portugueses, matam as três mulheres e deixam José Maria ferido e só no mundo. A sede de vingança contra os invasores só arrefece quando, depois de ajudado a escapar de um hospital de campanha francês pela vivandeira Rosina Regnaut que o assistia, e por quem se vem a apaixonar. A continuação da guerra contra o exército de Napoleão tornam os seus amores perigosos de mais, e, ao saber-se grávida, Rosina sai de Portugal para a Itália, onde José Maria se lhe iria reunir depois de terminada a guerra. Depois de derrotado Napoleão, José Maria percorre toda a Itália no encalço de Rosina e do filho que esta levava no ventre. Não a encontrou em Itália, nem em França, até que por fim em Londres encontra a sua filha, denominada Augusta em honra de sua irmã, e a história da morte de Rosina. A filha acaba por morrer também, e José Maria, desprovido de forças para viver, entra num estado de semi-loucura e vem a terminar os dias entre as ruas do Porto, onde andava a vaguear e a tocar guitarra». In Resumo da Obra

O Desgraça

Entre os tipos populares, que pouco a pouco vão rolando a sepulturas ignoradas, deixando após si o rasto de uma vida sobremodo acidentada de peripécias quase sempre sombrias, rasto que só um ou outro escritor se compraz em procurar desde a cadeia ao degredo, do albergue ao cemitério, avulta na tradição portuense um homem que por longo tempo ai foi o alvo das assuadas do rapazio e dos chascos dos frequentadores de botequim. Uns chamavam-lhe o José das Desgraças, outros simplesmente o Desgraça. Parece dever inferir-se de tão lutuosa alcunha que a população da cidade lhe conhecia a biografia exuberante de lastimosos lances. Tal não há. Quando ele passava coxeando arrimado ao seu bordão, sobraçada a guitarra inseparável, de velho chapéu alto amassado, sobrecasaca abotoada, pendente a medalha de prata da guerra peninsular, anel de ouro na mão esquerda, na boca o enorme cigarro que ele próprio manipulava com pontas de charuto, seguido do cão fiel, que se chamava Junot, por motivos que mais tarde desvelaremos, o gentio das ruas ou sorria alvarmente da pitoresca pobreza do excêntrico mendigo, ou rompia em apostrofes de Ó Desgraça! Ó Desgraça! que ele parecia não ouvir ou desprezar em sua imperturbável serenidade.
E a populaça, sem sequer suspeitar da tenebrosa origem do cognomento, quedava-se a ouvi-lo, calmadas as arruaças com que era saudado, quando ele, sentado à porta de um café, especialmente o do Jardim de S. Lazaro, começava a tanger melancolicamente a sua guitarra, na qual executava óperas completas, queimando o seu enorme rolo de tabaco e contemplando, de cabeça inclinada, o cão que parecia escutá-lo atentamente... Depois, quando a mão caía extenuada sobre as cordas silenciosas, afigurava-se, tão alheado ficava, que estava rememorando mágoas íntimas, segredos da sua vida obscura, sem que parecesse dar tento das esmolas que lhe atiravam ao regaço os que entravam ou saíam a porta do botequim. Às vezes, como se não houvesse conseguido linimentar com a música as recordações dolorosas acordadas no imo peito, voltava a tanger na guitarra uns dulcíssimos arpejos que finalmente lhe serenavam a alma tempestuosamente alanceada, chorando por ele, que não tinha lágrimas.
Restituído à realidade da sua resignada nobreza, erguia-se firmado no bordão, sobraçava a guitarra, e continuava a peregrinação, vagueando pelas ruas da cidade, sem todavia dirigir-se aos transeuntes e recebendo impassível os óbolos que jamais solicitava. E o cão, o leal companheiro de infortúnio, seguia igualmente resignado seu dono, e quase sempre indiferente às provocações do rapazio que se divertia em apedrejá-lo e açulá-lo. Frequentemente intervinha o Desgraça ameaçando com o bordão os perseguidores do seu dedicado companheiro; mas como o inquieto rapazio conhecesse que a velhice lhe desnervava o braço, entrava de levantar celeuma atroadora, em que, ainda assim, quase sempre se distinguiam vozes de Morra o Desgraça e o Junot! Vende o anel e não andes a pedir!
Estranho homem devia de ser esse, que parecia guardar grande mistério, e tinha por único amigo, entre uma população inteira, que o apupava, o cão fiel, e por consolação única a sua guitarra, e por única protecção a piedade dos seus conterrâneos, que ele não implorava. O povo não suspeitava sequer que a biografia daquele homem justificasse o apelido. Quando o Desgraça fazia chorar a guitarra entre os dedos, e o cão denunciava compreender a guitarra, como que ligeiramente se comovia a turba acatassolada, mas daí a pouco, quando estrondeavam os apupos, era o cão o único espectador que mostrava ler na fisionomia do velho o mistério de uma vida tormentosa. Ria a gentalha torpe daquela íntima convivência de homem e cão. E todavia não saía dentre a arraia miúda o mais desgraçado dos populares a dizer ao pensativo guitarrista: O teu cão sente e não fala; eu falarei por ele. Sofres decerto muito e precisas consolação. Eu sou também muito infeliz, muito mais do que tu, porque não tenho guitarra nem cão. Deixa-me pois compartir do teu cão e da tua guitarra, que eu te darei o que tu não tens, dois ouvidos que te escutem, uma voz que te responda.
Não. A desgraça é tão infeliz, que se ri da desgraça; é ela que se desautoriza a si mesma. Só lhe falavam para chasqueá-lo, para lhe cuspir na face a zombaria que ele, absorto no seu contínuo cogitar, deixava resvalar aos pés. E todavia aquele homem era um grande desgraçado, que só tinha no mundo a sua guitarra, o seu cão, e as suas recordações. O anel, que trazia na mão esquerda, podia matar-lhe talvez um dia de fome, mas não haveria miséria que lho arrancasse do dedo, porque as suas recordações estavam naquele anel». In Alberto Pimentel, O Anel Misterioso, Cenas da Guerra Peninsular, Empreza da História de Portugal, Lisboa, Sociedade Editora Livraria Moderna,1904.

Cortesia da EHdePortugal/JDACT