«A obra foi inspirada num mendigo que vagueava pelas ruas do Porto,
conhecido como o Desgraça, e que o autor identifica como tendo
sido o militar português José Maria Graça Strech. A narrativa centra-se
no período da Guerra Peninsular,
tendo como ponto de partida a tomada do Porto na segunda invasão francesa, e a
tragédia da Ponte das Barcas. Durante
a tomada do Porto pelo exército francês, na segunda invasão francesa, o capitão
do exército português Graça Strech é mortalmente ferido, e o seu filho,
José Maria, acorre à casa da família com a intenção de socorrer a sua irmã
Augusta, suas mãe e avó. Entretanto o exército invasor, no saque que se seguiu
a vitória sobre os militares portugueses, matam as três mulheres e deixam José
Maria ferido e só no mundo. A sede de vingança contra os invasores só arrefece
quando, depois de ajudado a escapar de um hospital de campanha francês pela
vivandeira Rosina Regnaut que o assistia, e por quem se vem a apaixonar.
A continuação da guerra contra o exército de Napoleão tornam os seus amores
perigosos de mais, e, ao saber-se grávida, Rosina sai de Portugal para a
Itália, onde José Maria se lhe iria reunir depois de terminada a guerra.
Depois de derrotado Napoleão, José Maria percorre toda a Itália no
encalço de Rosina e do filho que esta levava no ventre. Não a encontrou
em Itália, nem em França, até que por fim em Londres encontra a sua filha,
denominada Augusta em honra de sua irmã, e a história da morte de Rosina.
A filha acaba por morrer também, e José Maria, desprovido de forças para
viver, entra num estado de semi-loucura e vem a terminar os dias entre as ruas
do Porto, onde andava a vaguear e a tocar guitarra». In Resumo da Obra
O Desgraça
Entre os tipos populares, que pouco a pouco vão
rolando a sepulturas ignoradas, deixando após si o rasto de uma vida sobremodo
acidentada de peripécias quase sempre sombrias, rasto que só um ou outro
escritor se compraz em procurar desde a cadeia ao degredo, do albergue ao
cemitério, avulta na tradição portuense um homem que por longo tempo ai foi o
alvo das assuadas do rapazio e dos chascos dos frequentadores de botequim. Uns
chamavam-lhe o José das Desgraças,
outros simplesmente o Desgraça.
Parece dever inferir-se de tão lutuosa alcunha que a população da cidade lhe
conhecia a biografia exuberante de lastimosos lances. Tal não há. Quando ele
passava coxeando arrimado ao seu bordão, sobraçada a guitarra inseparável, de
velho chapéu alto amassado, sobrecasaca abotoada, pendente a medalha de prata
da guerra peninsular, anel de ouro na mão esquerda, na boca o enorme cigarro
que ele próprio manipulava com pontas de charuto, seguido do cão fiel, que se
chamava Junot, por
motivos que mais tarde desvelaremos, o gentio das ruas ou sorria alvarmente da
pitoresca pobreza do excêntrico mendigo, ou rompia em apostrofes de Ó
Desgraça! Ó Desgraça! que ele parecia não ouvir ou desprezar em
sua imperturbável serenidade.
E a populaça, sem sequer suspeitar
da tenebrosa origem do cognomento, quedava-se a ouvi-lo, calmadas as arruaças
com que era saudado, quando ele, sentado à porta de um café, especialmente o do
Jardim de S. Lazaro, começava a tanger melancolicamente a sua guitarra,
na qual executava óperas completas, queimando o seu enorme rolo de tabaco e
contemplando, de cabeça inclinada, o cão que parecia escutá-lo atentamente... Depois,
quando a mão caía extenuada sobre as cordas silenciosas, afigurava-se, tão
alheado ficava, que estava rememorando mágoas íntimas, segredos da sua vida
obscura, sem que parecesse dar tento das esmolas que lhe atiravam ao regaço os
que entravam ou saíam a porta do botequim. Às vezes, como se não houvesse
conseguido linimentar com a música as recordações dolorosas acordadas no imo
peito, voltava a tanger na guitarra uns dulcíssimos arpejos que finalmente lhe
serenavam a alma tempestuosamente alanceada, chorando por ele, que não tinha lágrimas.
Restituído à realidade da sua
resignada nobreza, erguia-se firmado no bordão, sobraçava a guitarra, e
continuava a peregrinação, vagueando pelas ruas da cidade, sem todavia
dirigir-se aos transeuntes e recebendo impassível os óbolos que jamais
solicitava. E o cão, o leal companheiro de infortúnio, seguia igualmente
resignado seu dono, e quase sempre indiferente às provocações do rapazio que se
divertia em apedrejá-lo e açulá-lo. Frequentemente intervinha o Desgraça ameaçando com o bordão
os perseguidores do seu dedicado companheiro; mas como o inquieto rapazio
conhecesse que a velhice lhe desnervava o braço, entrava de levantar celeuma
atroadora, em que, ainda assim, quase sempre se distinguiam vozes de Morra o Desgraça e o Junot!
Vende o anel e não andes a pedir!
Estranho homem devia de ser esse,
que parecia guardar grande mistério, e tinha por único amigo, entre uma
população inteira, que o apupava, o cão fiel, e por consolação única a sua
guitarra, e por única protecção a piedade dos seus conterrâneos, que ele não
implorava. O povo não suspeitava sequer que a biografia daquele
homem justificasse o apelido. Quando o Desgraça
fazia chorar a guitarra entre os dedos, e o cão denunciava compreender a
guitarra, como que ligeiramente se comovia a turba acatassolada, mas daí a
pouco, quando estrondeavam os apupos, era o cão o único espectador que mostrava
ler na fisionomia do velho o mistério de uma vida tormentosa. Ria a gentalha
torpe daquela íntima convivência de homem e cão. E todavia não saía dentre a
arraia miúda o mais desgraçado dos populares a dizer ao pensativo guitarrista: O teu cão sente e não fala; eu falarei por
ele. Sofres decerto muito e precisas consolação. Eu sou também muito infeliz,
muito mais do que tu, porque não tenho guitarra nem cão. Deixa-me pois
compartir do teu cão e da tua guitarra, que eu te darei o que tu não tens, dois
ouvidos que te escutem, uma voz que te responda.
Não. A desgraça é tão infeliz, que se ri da desgraça; é ela que se
desautoriza a si mesma. Só lhe falavam para chasqueá-lo, para lhe cuspir na
face a zombaria que ele, absorto no seu contínuo cogitar, deixava resvalar aos
pés. E todavia aquele homem era um grande desgraçado, que só tinha no mundo a
sua guitarra, o seu cão, e as suas recordações. O anel, que trazia na mão
esquerda, podia matar-lhe talvez um dia de fome, mas não haveria miséria que lho
arrancasse do dedo, porque as suas recordações estavam naquele anel». In Alberto
Pimentel, O Anel Misterioso, Cenas da Guerra Peninsular, Empreza da História de
Portugal, Lisboa, Sociedade Editora Livraria Moderna,1904.
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