Um toledano diferente dos outros
«(…) É verdade, confesso que várias vezes abandonei Toledo, cansado de
todas estas intrigas, estas conspirações, esta violência, mas também porque fui
atraído, um pouco mais tarde, pela vida cultural brilhante que reinava em Córdova,
na época dos grandes califas. Foi então que escrevi a obra que mais contribuiu
para a minha fama, al-Muhtasar; é ao mesmo tempo um tratado que expõe e comenta
todas as nossas crenças religiosas e um convite à renúncia a todas as tentações
que nos afastam do bom caminho. Mas, durante este exílio momentâneo, permaneci
fiel à minha cidade. A ela regressei quando de novo aí reinou o espírito nas décadas
que precederam a sua conquista por Afonso VI. Este século V da Hégira foi para
nós, muçulmanos, a idade de ouro cultural da cidade.
Fui aí chamado para ser nomeado cadi
pelo soberano da cidade, chefe de uma dessas taifas, de um desses pequenos estados que haviam nascido após o
desmembramento do califado de Córdova. A Toledo
que então conheci, era capital de um reino cujos príncipes rivalizaram com o
fausto de Córdova e de Sevilha. Quando a tornei a ver, após uma ausência
demasiado longa, fiquei fascinado com o luxo exótico dos palácios que o rei
al-Ma'mun herdara dos seus predecessores. Por outro lado, ele próprio embelezou
e aumentou a cidade para a transformar numa maravilha artística. Para o realizar,
os melhores artistas e os artífices mais competentes, arquitectos, escultores,
pintores, alguns vindos das longínquas terras do Oriente, nela convergiram e exibiram
os seus talentos.
Um determinado poeta da corte podia, com justiça, exclamar, ao contemplar
a cidade alcandorada num promontório e rodeada pelas gargantas que o Tejo
talhou na rocha: Toledo está além de tudo
o que se diz dela. Deus vestiu-a como uma noiva cingindo-lhe a cintura com um
rio semelhante à Via Lâctea e coroando-lhe a cabeça com ramos que são como
estrelas. Os arredores imediatos não eram menos belos. Ao longo do Tejo estendiam-se,
a perder de vista, pomares onde se colhiam sobretudo romãs muito saborosas. No
meio dos jardins perto de Alcântara, a
ponte, a famosa almunya, residência
de campo, real. Aí se erguia um grande pavilhão, chamado o salão da Nora.
Ao lado, um vasto lago em cujo centro fora construído um quiosque onde o rei se
poderia dirigir de barco. O quiosque tinha forma de cúpula e era feito de vitrais
de mil cores e as juntas que os uniam eram de ouro. Um dispositivo engenhoso
conduzia a água ao cimo da cúpula de modo que, ao escorrer pelas paredes,
envolvia completamente o refúgio real com uma cortina de frescura.
Na estação calmosa, al-Ma'mun gostava de aí se recolher para gozar de
uma temperatura mais clemente. De noite acendiam-se tochas no seu interior e o
espectáculo que proporcionava visto da margem era mágico. Um poeta, convidado
pelo príncipe, descreve-nos deste modo a visão que teve: O salão brilhava como se o céu se encontrasse no mais alto do
firmamento e a lua cheia no seu zénite. As flores perfumavam o ambiente e, no
rio, os convidados bebiam à vontade. A nora gemia como gemem, feridas pela
chama devoradora da dor, a camela que perdeu a sua cria ou a mãe que vê morrer
o seu filho. O céu parecia banhado com gotas de orvalho. Os leões das fontes
abriam as suas enormes fauces para dar água à vontade. Perante tanta beleza,
todo o toledano se sentia com alma de poeta. Quanto a mim, o cargo de cadi deixava-me inúmeros tempos livres
que ocupava com o estudo. Dirigia os trabalhos de um grupo de astrónomos; entre
eles encontrava-se o meu discípulo preferido, Azarquiel, que continuou a minha
obra publicando as Tábuas de Toledo que calculáramos juntos. Estava ali o fruto de
vinte e cinco anos de observações do céu.
Essas tabelas tratavam do movimento dos planetas, da medição do tempo,
e dos eclipses. Azarquiel e eu tentávamos deste modo adaptar os dados dos
Antigos às coordenadas de Toledo. Quantas vezes, durante a minha tão
longa existência, me insurgi contra esses ignorantes que afirmavam que o nosso
único mérito foi termos servido de intermediários para a cultura grega! Sim,
demos a conhecer Aristóteles e Euclides, Ptolomeu e Hipócrates,
mas também corrigimos e melhorámos as suas obras. Graças à sua observação do céu,
Ptolomeu chegou a conclusões interessantes, mas os nossos observatórios
de Damasco, em seguida os de Bagdad, e por fim os de Toledo, fizeram
descobertas extraordinárias. E, além do mais, em Toledo, aperfeiçoámos e
fabricámos muitos instrumentos de observação e de cálculo. Por exemplo, foi em
Toledo que Ibrahim ibn Saïd al-Sahbi inventou e construiu o astrolábio
universal. Toledo vivia, Toledo
pensava, Toledo criava.
Vejo um signo desta vitalidade no gosto universal entre os toledanos pelas
coisas escritas. O que está escrito fixa o saber para as gerações seguintes. É
verdade que partilhamos este gosto com a totalidade do nosso povo. Lembro-me de
uma discussão animada que tive com um cristão chamado Eulógio; acusava
os meus de terem destruído a biblioteca de Alexandria, aquando da
conquista do Egipto no século I da Hégira.
Como podia ele acreditar que um dos nossos emires tivesse pronunciado esta
frase criminosa: Se esses livros
contrariam a nossa fé, devem ser destruídos, se concordam, são inúteis?
Tive de lhe citar, para acabar de o convencer, as setenta bibliotecas
de Córdova dos califas que, todas elas reuniam mais de um milhão de obras. A
principal, a dos Príncipes, não fora criada no terceiro século da Hégira pelo emir Muhammad?
Abderrahman II teve o cuidado de a enriquecer e mandou ao Oriente o poeta
astrólogo Abbas ibn Nasih com a missão de lhe trazer todas as obras que conseguisse
encontrar. Mas foi al-Nakem II que a tornou igual à de Alexandria visto que
então possuía quatrocentos mil volumes. E nós, toledanos, herdámos uma boa
quantidade dessas obras quando o califado se desmembrou». In Louis Cardaillac, Tolède, XII-XIII, Éditions
Autrement, Paris, 1991, Toledo XII-XIII, Muçulmanos. Cristãos,
Judeus, O Saber e a Tolerância, Terramar, Lisboa, 1996, ISBN 972-710-144-5.
Cortesia de Terramar/JDACT