Fernão Lopes: A Concepção da História
«(…) Mesteiral da escrita histórica, o nosso cronista trabalhou a tempo
inteiro no ofício, beneficiando do emprego paralelo de guarda-mor da Torre do
Tombo e da experiência de rigor do cargo de tabelião-geral do reino. Como é,
que o nosso mesteiral, mestre, e mestre maior da História portuguesa, concebeu a História? Antes de
mais, o historiador tem de pugnar pela verdade dos factos. Essa verdade
consiste na identidade entre os acontecimentos ocorridos e a descrição que deles
se faz, identidade que pode ser bloqueada pela mentira ou pelo erro que é
quando cuidamos verdade aquilo que é
falso. O terreno psicológico favorável ao germinar da mentira e do erro
situa-se na afeição que impulsiona o historiador a enaltecer os senhores em
cuja mercê e terra vive ou a favorecer a terra onde foram nados seus avós.
Fernão Lopes marca também diferenças entre verdade e certeza. Como
sabemos hoje, a certeza consiste em dizer (assentir) que há verdade ou
identidade entre tal acontecimento e a narração desse acontecimento. As marcas
da diferença entre verdade e certeza aparecem-nos em expressões como: maior certidom haver não podemos
e ainda quando estabelece regras para confirmar a verdade e firmar a certeza: não certificar cousa salvo de muitos
aprovada; não certificar cousa que não se apoie em escrituras vestidas de fé. Estas escrituras distribuem-se
por um campo diversificado onde se individualizam os livros escritos sobre os
acontecimentos (os testemunhos); as inscrições tumulares e monumentais;
os documentos dos cartórios, designadamente do arquivo régio da Torre do Tombo de
que ele era o guardador.
Quanto aos livros escritos sobre os acontecimentos, Fernão Lopes pratica
a sua discussão, provocando o leitor para a reflexão e a escolha da descrição
que lhe parece ou nos inculca como mais verdadeira.
Fazer História não é apenas alcançar a verdade dos factos. Para ser luz da verdade e testemunho dos antigos
tempos é necessário ordenar
os elementos. O historiador é aquele que ordena, organiza as histórias ou descrições
dos acontecimentos: a muitos que
tiveram carrego de ordenar histórias; todo nosso cuidado nom abasta para ordenar a nua verdade;
certo é que quaisquer histórias muito
melhor se entendem e lembram se são perfeitamente e bem ordenadas que o sendo
por outra maneira; mostrando cada uma cousa por ordem donde houve seu primeiro princípio...
Convém reter aqui que as histórias se entendem ou usando palavras nossas que
estão unidas por um fio que o entendimento pode encadear e descobrir na sua lógica.
Não se trata de uma palavra que saltou para a frente no corpo do discurso. Examinadas tais opiniões, segundo um
historiador escreve, não satisfazem ao razoado entendimento. Para que
serve este fazer / escrever a história?
Para deixar um quinhão de lembrança, ca
se o escorregamento dos grandes tempos gasta a fama dos excelentes príncipes, muito
mais a longa idade soterra o nome das outras pessoas dentro no monumento com eles.
Mas não é vã a lembrança?
Não é apenas fumo e vaidade, usando um salomónico e clerical discurso? A lembrança serve para
espicaçar os vivos a conquistarem um espaço, a usufruírem antecipadamente o
prazer da futura lembrança. Mas não só. Para as acções que se abrem nas nossas
mãos e nos nossos passos, a memória-história constitui um guia, no caso para os
autos cavaleirosos, sem o qual
caminhamos às apalpadelas: porque não há
cousa tão certa nem por que se os homens melhor avisem daquilo que aos autos
cavaleirosos pertence que esguardar nas obras por que os antigos floresceram ou
houveram algum contrário; doutra guisa, sendo homem delas ignorante, quase cego
é nas que são por vir. A massa maior dos acontecimentos narrados por Fernão
Lopes foram herdados. Outros os construíram,
quer testemunhas presenciais dos acontecimentos quer registadores dos relatos
dessas testemunhas. Mas Fernão Lopes também construiu factos, isto é,
descreveu, narrou, criou descrições dos acontecimentos servindo-se quer de
testemunhos orais ou escritos em primeira ou segunda mão quer de documentos de
onde extraiu, construiu narrações de acontecimentos.
Tem sido referida a abundante utilização por parte do nosso autor de
documentos da chancelaria régia, muitas vezes sem aviso. Mas o historiador da Crónica
de D. João I não usa apenas o documento na criação dos factos, usa-o
como suporte de leitura directa desses mesmos factos. Na escolha das diferentes
versões dos acontecimentos, o autor recorre ainda aos documentos para confirmar
a versão verdadeira. Quais as intenções do Mestre de Avis e dos seus
companheiros quando se dirigem às
Cortes de Coimbra de 1385? E esta razão, segundo nos parece, ocupa mor
parte da verdade que as outras. Porque na procuração que Lopo Martins, corregedor
àquele tempo de Lisboa, e João Veiga e Afonso Gonçalves e Silvestre Esteves [o
que lançou o bispo da torre da Sé a fundo] e Álvaro Gil com outros muitos
da cidade fizeram a Pedro Afonso Farinha […] e a Martim Lourenço, seus cidadãos
[…], que eles e em seu nome pudessem alçar e receber por rei e senhor destes
reinos o mui nobre senhor João [...] e lhe fazer preito e menagem como a seu rei e
senhor. E o mesmo fizeram o concelho de Évora e os concelhos das outras vilas e
cidades que levavam procuração para a eleição
do Mestre-Rei. Fernão Lopes faz (escreve) aqui História como
historiador dos nossos dias. E insistimos. A verdade, isto é, a identidade
entre o acontecimento e a sua narração pode ser maior ou menor, pode ocupar mor ou menor parte da verdade». In António Borges Coelho, A Revolução de
1383, Editorial Caminho, Colecção Universitária, 1984.
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