Introdução
«(…) Do ponto de vista do proveito, é sabido que a viagem inaugural de
Vasco da Gama não suscitou logo grandes efeitos directos. Foram embarcados em 1497 (e estamos a apoiar-nos no Tratado)
panos, barretes vermelhos, gorras, cascavéis, facas e outras coisas de pouca
monta (mais próprias para as trocas directas da Costa Ocidental Africana,
acrescentamos nós), pelo que com tão vulgares e desvalorizadas para-moedas não seria possível intervir
comercialmente nas já fortemente monetarizadas economias do Índico. Limitou-se,
pois, a primeira expedição do Gama a trazer amostras das especiarias asiáticas,
tal como, aliás, à partida, lhe fora solicitado. Apesar de tudo, em Moçambique
terá oportunidade de tomar conhecimento do trato do ouro de Sofala, ou antes,
do Monomotapa e os mercadores portugueses terão ensejo de, além dos
perigos, se aperceberem de como funcionavam os mercados orientais. Assim,
conforme alguns diplomas régios registam, o
proveito cobyçado de tamtas gentes rrecreçeo a nós [rei] e aos ditos nosos
rreinos, a partir da primeira viagem de Vasco da Gama, acrescentando outros
que também toda a Cristandade afinal beneficiou. O bem que adveio para o
Reino e para o serviço de Deus com a descoberta da Índia e o largo contributo
que ela deu para o conhecimento do orbe e dos homens teve, porém, um ónus
elevado, quer se considerarmos os enormes gastos suportados pela Coroa/Estado,
quer os elevados riscos/perigos inerentes a tal aventura. Dos gastos não falaremos
(nem Couto parece preocupar-se muito com eles, pelo menos, no seu Tratado),
mas dos perigos procuraremos dar alguns exemplos, até porque será a
circunstância de se pôr a vida a risco que, nos séculos XV e XVI, se confirmará
como uma das vias que mais concorriam para se obter honra, ou para galardoar
quem se dispunha a servir bem o rei e a comunidade. Ora, à nobreza natural
(própria do homem que já nasce nobre) Vasco da Gama acrescentou a nobreza
civel e politica que os seus feitos (arriscados e conseguidos) lhe granjearam
e os reis portugueses reconheceram. Concretamente (e voltamos a seguir o Tratado):
durante a primeira viagem, Vasco da Gama
e os companheiros foram atacados, às azagaiadas, no rio S. Tiago, tendo o
capitão-mor ficado ferido num pé; o piloto que tomaram em Moçambique pretendeu
meter as embarcações no saco de Quíloa e deu com a nau S. Rafael em cima
de uns baixos; os mouros de Calecute pretenderam incendiar os navios
portugueses; a expedição correu o risco de ficar retida na Índia, com a monção
desfavorável; no rio de Onor, já no regresso, o corsário Timoja armou um
perigoso ardil aos portugueses. De todas estas fortes ameaças para a vida
humana os nossos se livraram sob o comando competente e heróico de Vasco
da Gama, com o auxílio de Deus Nosso Senhor. Enfim, valeu-lhes
fundamentalmente, Deus, mas também o muito tento e a prudência e
cautela de Vasco da Gama (segundo a imagem transmitida por Couto), apesar
de, por vezes se mostrar homem colerico e apressado nas resoluções.
Porém, esta característica, aparentemente desfavorável do valerozo capitão,
não sairá depreciada à luz do juízo de Couto, já que, como era rezulluto ao concelho, assim trabalhou sempre pello ser na
ezecussaõ.
Era (é) na guerra que as virtudes humanas (valentia, prudência,
justiça, temperança...) mais tinham oportunidade de se afirmarem. Por tal e
como se explicita noutros Tratados quinhentistas sobre a
nobreza civil e cristã, o ofício das armas era o mais nobre/honrado do Mundo,
uma vez que por ele era conservada a liberdade, acrescentada a dignidade e
multiplicados os reinos e senhorios. Ora, deste ponto de vista, a imagem que
Couto nos dá de Vasco da Gama, sobretudo da sua actuação na Índia durante a
segunda e a terceira permanências, é não só a de um bom combatente e exigente
comandante militar, como a de um empenhado administrador do futuro Estado da
Índia». In Diogo do Couto, Tratado dos Feitos de Vasco da Gama e de seus filhos
na Índia, organização de José Azevedo Silva e João Marinho Santos, Universidade
de Coimbra, Faculdade de Letras, Edições Cosmos, Porto, 1998, ISBN
972-762-081-7.
Cortesia da FL da UCoimbra/JDACT