Um microcosmos de ouro e de lama
«(…) Este mundo múltiplo, do ponto de vista da condição social, era igualmente
múltiplo, a princípio, em matéria de convicções religiosas. Até 1492, em Sevilha, coabitaram os
conquistadores cristãos, a minoria judaica e os muçulmanos submetidos, mas
todos fiéis ao seu património cultural e às suas crenças religiosas. A expulsão
dos judeus e a acção repressiva da Inquisição (maldita)
puseram termo a esta pluralidade confessional, mas não conseguiram acabar com a
liberdade de consciência, que se manifestou, durante a primeira metade do
século, no aparecimento das correntes erasmianas e, durante a segunda
metade, no surgimento do pensamento evangélico de inspiração luterana, primeiro
defendido, com perigo da própria vida, por homens como Egídio ou Constantino
Ponce de la Fuente, e depois por religiosos do mosteiro vizinho de San Isidoro
del Campo, tais como Casiodoro de Reina e Cipriano de Valera, figuras de
primeiro plano do protestantismo europeu. A multiplicidade do mundo sevilhano
exigia uma organização da vida pública. Contudo, esta organização demonstrou
ser, ela também, múltipla. Com efeito, os homens que nela participam são funcionários
reais, conselheiros municipais, cónegos da Catedral, juízes de audiência, consules, da universidad dos carregadores, governadores das cidadelas ou
servidores do Santo Ofício (maldito). Seja
como for, o governo da cidade incumbe, no essencial, ao Cabildo secular, isto é, à municipalidade, cuja autoridade
se estende, além disso, a uma série de localidades repartidas entre o Aljarafe,
a montanha de Aroche, a de Constantina e a planície de Utrera.
O Conselho é presidido pelo assistente, autoridade local suprema, ao
mesmo tempo governador da região, presidente da câmara, juiz ordinário e chefe
da milícia urbana, que é nomeado pelo rei, mas que deve negociar com a
oligarquia local, a qual impõe os seus membros nas funções de veinticuatros (conselheiros
municipais), de jurados (representantes de bairros ou paróquias) e
outros cargos municipais. O Cabildo
é encarregado de velar pela satisfação de todas as necessidades da cidade,
graças às receitas que cobra dos impostos, dos monopólios, das sanções judiciárias,
e dos bens de sua propriedade, muito diversificados, que compreendem imóveis,
quintas, salinas, barcos, peixarias, tabernas, casas de especiarias, terrenos
comunais e moinhos. As despesas repartem-se entre o pagamento dos funcionários e
dos empregados, as infraestruturas militares (castelos, muralhas, soldados),
as obras públicas (fontes, caminhos, estradas), os estabelecimentos de beneficência
(hospitais, asilos, orfanatos), as obras públicas, o abastecimento (matadouros,
silos e mercados de cereais, Caños de Carmona) e outros serviços, como as farmácias do bairro
reservado do Arenal.
Arquitectura e festas
Apesar de todos esses esforços, as autoridades locais não estiveram à
altura de organizar os serviços exigidos por uma cidade em plena expansão. Sevilha
sofria de uma falta de infraestruturas por vezes alarmante. Não foi capaz de garantir a passagem do rio,
sua artéria vital, por uma ponte de pedra; ficou-se pela célebre ponte de barcas,
presas umas às outras, sempre sujeita a numerosos acidentes. O seu porto, a porta das Índia, também não
estava à altura da situação: não possuía cais em número suficiente, precisava
de uma dragagem eficaz e de instalações para as construções navais, e não dispunha
sequer de docas suficientes para as inevitáveis reparações. Os trabalhos de
urbanização do espaço intramuros também não trouxeram solução aos numerosos
problemas endémicos de que sofria a cidade: o da neutralização das cheias
periódicas do rio, o da evacuação dos detritos, amontoados em lixeiras infectas,
ou o da racionalização dos enterros numa cidade tão povoada. Contudo, a Sevilha
do século XVI soube dissimular as suas insuficiências sob a exibição
espectacular da sua arquitectura, soube esconjurar as suas misérias graças ao
turbilhão esfuziante dos seus ciclos de festas, e soube transmutar as suas sombras
e as suas luzes em matéria artística e literária». In Sevilha, Século XVI, De
Colombo a D. Quixote, Entre a Europa e as Américas., O coração e as riquezas do
Mundo, coordenação de Carlos Araújo, Carlos Martínez Shaw, Terramar, Lisboa,
1993, ISBN 712-710-073-2.
Cortesia de Terramar/JDACT