terça-feira, 22 de outubro de 2013

Sevilha. Século XVI. De Colombo a D. Quixote. Entre a Europa e as Américas. Carlos Araújo. «… chulos e mulheres da rua, sem esquecer os omnipresentes pícaros disfarçados de mendigos, ilustra amplamente o epíteto que os seus contemporâneos lhe deram: “Grande Babilónia da Espanha”»

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Um microcosmos de ouro e de lama
«(…) Este mundo múltiplo, do ponto de vista da condição social, era igualmente múltiplo, a princípio, em matéria de convicções religiosas. Até 1492, em Sevilha, coabitaram os conquistadores cristãos, a minoria judaica e os muçulmanos submetidos, mas todos fiéis ao seu património cultural e às suas crenças religiosas. A expulsão dos judeus e a acção repressiva da Inquisição (maldita) puseram termo a esta pluralidade confessional, mas não conseguiram acabar com a liberdade de consciência, que se manifestou, durante a primeira metade do século, no aparecimento das correntes erasmianas e, durante a segunda metade, no surgimento do pensamento evangélico de inspiração luterana, primeiro defendido, com perigo da própria vida, por homens como Egídio ou Constantino Ponce de la Fuente, e depois por religiosos do mosteiro vizinho de San Isidoro del Campo, tais como Casiodoro de Reina e Cipriano de Valera, figuras de primeiro plano do protestantismo europeu. A multiplicidade do mundo sevilhano exigia uma organização da vida pública. Contudo, esta organização demonstrou ser, ela também, múltipla. Com efeito, os homens que nela participam são funcionários reais, conselheiros municipais, cónegos da Catedral, juízes de audiência, consules, da universidad dos carregadores, governadores das cidadelas ou servidores do Santo Ofício (maldito). Seja como for, o governo da cidade incumbe, no essencial, ao Cabildo secular, isto é, à municipalidade, cuja autoridade se estende, além disso, a uma série de localidades repartidas entre o Aljarafe, a montanha de Aroche, a de Constantina e a planície de Utrera.
O Conselho é presidido pelo assistente, autoridade local suprema, ao mesmo tempo governador da região, presidente da câmara, juiz ordinário e chefe da milícia urbana, que é nomeado pelo rei, mas que deve negociar com a oligarquia local, a qual impõe os seus membros nas funções de veinticuatros (conselheiros municipais), de jurados (representantes de bairros ou paróquias) e outros cargos municipais. O Cabildo é encarregado de velar pela satisfação de todas as necessidades da cidade, graças às receitas que cobra dos impostos, dos monopólios, das sanções judiciárias, e dos bens de sua propriedade, muito diversificados, que compreendem imóveis, quintas, salinas, barcos, peixarias, tabernas, casas de especiarias, terrenos comunais e moinhos. As despesas repartem-se entre o pagamento dos funcionários e dos empregados, as infraestruturas militares (castelos, muralhas, soldados), as obras públicas (fontes, caminhos, estradas), os estabelecimentos de beneficência (hospitais, asilos, orfanatos), as obras públicas, o abastecimento (matadouros, silos e mercados de cereais, Caños de Carmona) e outros serviços, como as farmácias do bairro reservado do Arenal.

Arquitectura e festas
Apesar de todos esses esforços, as autoridades locais não estiveram à altura de organizar os serviços exigidos por uma cidade em plena expansão. Sevilha sofria de uma falta de infraestruturas por vezes alarmante. Não foi capaz de garantir a passagem do rio, sua artéria vital, por uma ponte de pedra; ficou-se pela célebre ponte de barcas, presas umas às outras, sempre sujeita a numerosos acidentes. O seu porto, a porta das Índia, também não estava à altura da situação: não possuía cais em número suficiente, precisava de uma dragagem eficaz e de instalações para as construções navais, e não dispunha sequer de docas suficientes para as inevitáveis reparações. Os trabalhos de urbanização do espaço intramuros também não trouxeram solução aos numerosos problemas endémicos de que sofria a cidade: o da neutralização das cheias periódicas do rio, o da evacuação dos detritos, amontoados em lixeiras infectas, ou o da racionalização dos enterros numa cidade tão povoada. Contudo, a Sevilha do século XVI soube dissimular as suas insuficiências sob a exibição espectacular da sua arquitectura, soube esconjurar as suas misérias graças ao turbilhão esfuziante dos seus ciclos de festas, e soube transmutar as suas sombras e as suas luzes em matéria artística e literária». In Sevilha, Século XVI, De Colombo a D. Quixote, Entre a Europa e as Américas., O coração e as riquezas do Mundo, coordenação de Carlos Araújo, Carlos Martínez Shaw, Terramar, Lisboa, 1993, ISBN 712-710-073-2.

Cortesia de Terramar/JDACT