domingo, 20 de outubro de 2013

Memórias do Tempo de Camilo. A. A. Alberto Pimentel. «Ouvia-se ás vezes dizer mal, e não se via quem falava, nem quem escutava. Era qualquer grupo, era o anonimato, era o bosque irresponsável, era o paradeiro nocturno, cintado por um gradeamento fúnebre como os cemitérios…»

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Um suposto enigma
«(…) Ernesto Bíester, transcrevendo logo a seguir palavras de Júlio César Machado, quase levanta o folho da misteriosa mascarilha, porque essas palavras contêm alguns pormenores elucidativos. Segundo elas, A. A. é talentosa e mártir; formosa e infeliz; estivera algumas vezes em Lisboa e da última partira sufocada em lágrimas. Por sua parte, Ernesto Bíester não resiste á tentação de comentar as palavras de Júlio César Machado por modo a insistir na amarga situação da talentosa e bela dama infortunada: leiam os Martyrios Obscuros, que são uma pagina solta d’aquella vida torturada e angustiosa, mas cheia de abnegação e rica de sacrifícios. Estamos vendo que se trata de um destes segredos de imprensa, que parece serem guardados apenas o bastante para que toda a gente os possa descobrir. E no caso de A. A. assim era.
Os jornalistas e homens de letras sabiam de que dama se tratava e bastavam eles para que no Martinho, no Grémio, no Passeio Público, nas palestras das livrarias, ficasse saciada a curiosidade dos amigos, dos conhecidos, dos preguntadores, que dali levavam o segredo a outros amigos, a outros conhecidos, a outros preguntadores. O Passeio Público, compreendido entre a actual Praça dos Restauradores e o Salitre, era uma espécie de Arcada sem arcos, de palratório com árvores e bancos, onde ás noites, desde a primavera ao outono, toda a gente ia saber o que não queria ignorar. Por que se mataria Fulano? dizia-se ao jantar no seio desta ou daquela família. Não sei, na minha repartição ninguém sabia. Vai logo ao Passeio Publico e pregunta. Todo o bom cidadão alfacinha, quando recolhia a casa para dormir, levava a história do prato do dia na ponta da língua. A moderna Avenida é bisbilhoteira como todos os centros de reunião, corta-se ali na casaca de quem vai passando, fala-se por certo de muita cousa e muita gente. Mas o antigo Passeio Publico, encaixilhado em grades de ferro, protegido por arvoredo espesso, com pouca luz se não havia festas, e com longas filas de bancos, parecia um logar ageitado para ser o Paraíso Terrestre da má-língua, a que sempre a sombra, a escuridade, a emboscada foram propícias.
Ouvia-se ás vezes dizer mal, e não se via quem falava, nem quem escutava. Era qualquer grupo, era o anonimato, era o bosque irresponsável, era o paradeiro nocturno, cintado por um gradeamento fúnebre como os cemitérios, onde cada um pode ir vêr enterrar… os outros. Nas livrarias havia serões de boa conversação, mais alta em conceitos e menos funda em intrigas. Com ser então menor a população da cidade, a quarta parte do que hoje é, o número de homens de letras subia a um algarismo importante. Ainda alguns anos depois eu conheci prédios ocupados de alto a baixo por literatos. Ao Salitre, esquina da travessa do Moreira, (actualmente rua Júlio César Machado) no prédio hoje tristemente célebre por uma tragédia de família, habitava o 3.° andar Júlio César Machado, que era o proprietário; no 2.° andar morava Rangel Lima; e no 1.° Ernesto Bíester. Defronte da Biblioteca Nacional, a casa n.° 14 tinha por inquilino no 1.° andar Silva Túlio, no 2.° Latino Coelho. Este escritor e outros, entre os quais o dramaturgo Ricardo Cordeiro, funcionário superior do Ministério do Reino, eram certos todas as noites na livraria do Silva ao Rocio, esse pobre Silva a quem não faltou certa aura, mas que depois passou, decadente, para uma lojinha na rua do Ouro e por fim para um cubículo ainda mais estreito, a sepultura.
Latino Coelho apenas saía de casa durante o dia para ir dar aula á Escola Politécnica, sempre acompanhado pelo irmão, porque a sua neurastenia lhe não permitia andar só. Numa carta a Teixeira Vasconcelos, publicada na Revista Contemporânea, ele mesmo confessa ser uma organização excentricamente nervosa; depois fala de outros casos da sua vida, como dizer el-rei Fernando que ele só fazia flores e alguém, creio que fora Carlos Bento, tê-lo definido um estilo, a procura de uma ideia. Também Bonaparte chamou a madame De Staël une phraseuse e esta odiosa opinião em nada a prejudicou perante a posteridade. Latino era sem dúvida um estilo, um belo e soberbo estilo, onde as flores não faltavam, como no manuelino; mas dentro desse opulento estilo, que profundeza de conceitos, que vasta erudição, que saber fortemente cimentado em conhecimentos scientíficos e adquirido nas muitas línguas que Latino versava facilmente! Neste homem ilustre o conversador, ou o orador académico e parlamentar, não ficava jamais desnivelado com o plumitivo». In Alberto Pimentel, Memórias do Tempo de Camilo, A. A., Companhia Portuguesa Editora, Magalhães e Moniz Editores, Porto, 1913.

Cortesia de M e Moniz/JDACT