terça-feira, 22 de outubro de 2013

Botequim da Poesia. Alberto Caeiro. «Ele mora comigo na minha casa a meio do outeiro. Ele é a Eterna Criança, o deus que faltava. Ele é o humano que é natural, ele é o divino que sorri e que brinca. E por isso é que eu sei com toda a certeza que ele é o Menino Jesus verdadeiro»

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VIII
[…]
Um dia que Deus estava a dormir
e o Espírito Santo andava a voar,
ele foi à caixa dos milagres e roubou três.
Com o primeiro fez que ninguém soubesse que ele tinha fugido.
Com o segundo criou-se eternamente humano e menino.
Com o terceiro criou um Cristo eternamente na cruz
e deixou-o pregado na cruz que há no céu
e serve de modelo às outras.
Depois fugiu para o Sol
e desceu pelo primeiro raio que apanhou.
Hoje vive na minha aldeia comigo.
É uma criança bonita de riso e natural.
Limpa o nariz ao braço direito,
chapinha nas poças de água,
colhe as flores e gosta delas e esquece-as.
Atira pedras aos burros,
rouba a fruta dos pomares
e foge a chorar e a gritar dos cães.
E, porque sabe que elas não gostam
e que toda a gente acha graça,
corre atrás das raparigas
que vão em ranchos pelas estradas
com as bilhas às cabeças
e levanta-lhes as saias.

A mim ensinou-me tudo.
Ensinou-me a olhar para as coisas.
Aponta-me todas as coisas que há nas flores.
Mostra-me como as pedras são engraçadas
quando a gente as tem na mão
e olha devagar para elas.

Diz-me muito mal de Deus.
Diz que ele é um velho estúpido e doente,
sempre a escarrar no chão
e a dizer indecências.
A Virgem Maria leva as tardes da eternidade a fazer meia.
E o Espírito Santo coça-se com o bico
e empoleira-se nas cadeiras e suja-as.
Tudo no céu é estúpido como a Igreja Católica.
Diz-me que Deus não percebe nada
das coisas que criou
«Se é que ele as criou, do que duvido».
«Ele diz, por exemplo, que os seres cantam a sua glória,
mas os seres não cantam nada.
Se cantassem seriam cantores.
Os seres existem e mais nada,
e por isso se chamam seres».

E depois, cansado de dizer mal de Deus,
o Menino Jesus adormece nos meus braços
e eu levo-o ao colo para casa.

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Ele mora comigo na minha casa a meio do outeiro.
Ele é a Eterna Criança, o deus que faltava.
Ele é o humano que é natural,
ele é o divino que sorri e que brinca.
E por isso é que eu sei com toda a certeza
que ele é o Menino Jesus verdadeiro.

E a criança tão humana que é divina
é esta minha quotidiana vida de poeta,
e é porque ele anda sempre comigo que eu sou poeta sempre.
E que o meu mínimo olhar
me enche de sensação
e o mais pequeno som, seja do que for,
parece falar comigo.

A Criança Nova que habita onde vivo
dá-me uma mão a mim
e a outra a tudo que existe
e assim vamos os três pelo caminho que houver,
saltando e cantando e rindo
e gozando o nosso segredo comum
que é o de saber por toda a parte
que não há mistério no mundo
e que tudo vale a pena.
[…]

Parte do Poema de Alberto Caeiro (Fernando Pessoa), in ‘Poesias
ISBN 978-972-617-195-9

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