«(…) O rei voltou a adormecer a meio da frase. Talvez tivesse
desmaiado, porque a janela aberta lhe trouxera um sopro de vento e o vento uma
baforada fétida do unguento que lhe rodeava as pernas reais. Pelos corredores
do palácio sussurrava-se que o rei se desfazia de soltura. A essa mesma hora, correndo
na cidade o sino da oração, abençoando-se os cristãos pelas aven-marias,
Nuno Coelho, que entre os seus nascera e morreria Zacuto, contava e ria: -
Enchi-lhe as pernas com excremento de reco, ao maldito! E disse-lhe: Esses
seus sonhos são obra de algum diabo inventado por cristãos... - Ainda bem
que a Inquisição (maldita) não chega aqui
- ouviu-se dizer por entre gargalhadas bem saboreadas.
Grande rebuliço ia na corte dos Reis Católicos. Belinda e Nando,
arremedando, insultavam a filha Maria, que de histérica se toldava. - Não caso,
não caso, não caso. Porras! -
Mas, filha. insistia o pai. - Calai-vos... Os homens são todos iguais, só pensam
em si próprios... Porras! -
Não; se diferencian por su forma, por las funciones que desempeñan y, claro
está, por su significado... - disse a rainha. - E trata-se de um rei, apesar de
feio como um bode, Jesus! -
Mas, se não me quero casar, porras!
- Pois sim, mas vai casar-se, com a graça e ajuda de Deus. - Veja bem, Maria,
as vantagens, que a Deus tanto interessam: o reino dele está em franco
progresso, não sei por que graça divina, enriquece com o oiro da Guiné, já
consta no Vaticano que as suas frotas podem ir a todo o lado do Mundo conhecido
e desconhecido, como já foram às Índias e, ainda por cima, Maria, pode ser que
tu, com a ajuda do Senhor, pode ser que tu, no lugar da tua irmã falecida,
venhas a reinar sozinha no maior reino do Mundo, o dele e o nosso unido até porque,
Graças a Deus, diz-se que ele está tão enfermo que nem para o coito se avia,
guarde-o o Senhor, ámen.
- E se ele morrer depressa, Deus o leve, depressa poderás ter filhos de
outro. E sais de cá como princesa e chegas lá rainha, vê bem, mede bem. - Mas, porras, eu amo Julio! - bramou
Maria. – Que se dane esse danado. Não passa de um trovador! - Mas eu amo-o! Porras y porras! - Não tem nada
de amar, ouviu? E uma princesa quer-se casta e pura e não para amores assim de
amar que a comprometam... Pois sim, mas Julio há mais de um ano, à revelia de todos
menos da princesa, pernoita na florida câmara da católica princesinha. -
Mato-me! - gritou Maria e começou a avançar para o varandim da sala, disposta a
tudo. - Levai Julio no vosso séquito - gritou a rainha e Maria estacou,
abandonando a ideia de suicídio. - Levo?
- disse Maria sorridente, arredando de vez a hipótese de se lançar do varandim
para a fria descida para a eternidade e satisfeitíssima com a possibilidade. Os
Reis Católicos, à uma, aproveitaram o sorriso, a mudança de planos: - Levai-o! -
Assim, casarei. - A bem da união das coroas! - Ámen! - Ámen e olé! - Olé!
Frei Tomás saiu do paço a remoer as palavras do cardeal e a pensar se
Deus andaria feliz com homens como os daquele tempo de perdição, odiando-se e
separando-se em grupos e diferenças, ao invés de fraternalmente se unirem. Deus
não prometia o reino dos céus aos circuncisos nem aos penitentes, tão-pouco aos
dogmáticos ou aos iletrados. Não o fazia especificamente a doutores ou a imbecis.
Deus celebrava que Nele os homens eram iguais não mandava açoitá-los ou
assá-los, muito menos roubar-lhes os filhos, agora como antes o fizera Herodes.
A Hungria, a Boémia, a Polónia, toda a Germânia, os principados e as repúblicas
italianas e o próprio Vaticano, Estados católicos que frei Tomás visitara, permitiam
que os judeus vivessem em seus territórios, respeitavam-lhes as crenças
religiosas... Porquê então as atitudes de El-Rei e, mais cruéis e desumanas, as dos seus sogros? Que Deus
pusesse cobro a tanta vilania, mais própria de descrentes que de homens de fé,
era o seu orar mais profundo... As cogitações de frei Tomás tiveram ainda mais profundidade
quando os seus amigos, Isaac e Zacuto, agora chamados Nuno e Pedro
Coelho, irmãos, judeus, recém-baptizados à força, depois de saudarem a sua
visita com alegria sincera lhe contaram os pormenores mais recentes.
- Nessa altura, ainda El-Rei reunia os conselheiros - disse Isaac. E
Zacuto esclareceu: - Mas os danados não se puseram de acordo no que a nós dizia
e respeitava. Dividiram-se em duas as opiniões, mas a terceira e a mais forte
era a opinião do rei que já nos tinha de ponta e condenados antes de quaisquer
condenações. - Mas como foi? -
quis saber frei Tomás, estremecendo na suposição de uma resposta ainda mais chocante.
Foi que primeiro libertou a maior parte dos judeus cativos para pouco depois, e
para casar com a tal infanta herdeira de mil riquezas, nos perseguiu cruelmente».
In
Alexandre Honrado, Os Venturosos, Círculo de Leitores, Braga, 2000, ISBN
972-42-2392-2.
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