NOTA: De acordo com o original
«(…) Dêmos a palavra ao
incorrecto chronista das Lendas, para
lhe ouvirmos narrar, em sua rude mas pittoresca linguagem, as coisas da
expedição desde que largou das costas hespanholas até ao ponto da conjuração. A qual armada concertada com a gente paga
por seis mezes, partiu de San Lucas (San Lucar) de Barrameda em Agosto do anno
de 1519. Com que navegou ás Canárias
e fez aguada. Onde estando lhe chegou um barco com cartas de seu sogro, em que
lhe dava aviso que tivesse em sua pessoa boa vigia, porque tinha sabido que os
capitães que levava disseram a seus amigos e parentes, que se elle os anojasse
que o matariam e se levantariam contra elle. Ao que lhe respondeu que elle lhes
não fazia aggravos porque elles tivessem razão de o fazer; que por isso elle os
não fizera, mas os regedores lh'os deram, que os conheciam; que, bons ou maus,
elles trabalhariam por fazer o serviço do imperador, que a isso ofFereceram a
vida. A qual resposta o sogro mostrou aos regedores, que muito louvaram o
coração de Magalhães.
Partiu-se das Canárias de Tenerife e foi demandar o Cabo-Verde, d'onde
atravessou á costa do Brasil, e foi entrar n'um rio que se chama Janeiro… E
d'aqui foram navegando até chegarem ao cabo de Santa Maria, que João de Lisboa
descobrira no anno de 1514, e d'aqui
foram ao rio de S. Julião, onde estando tomando agua e lenha João de Cartagena,
que era sota capitão-mór, se concertou com os outros capitães que se levantassem,
dizendo que o Magalhães os levava enganados e vendidos. E porque elles
entendiam que o Gaspar de Quesada era amigo do Magalhães, o João de Cartagena
se metteu no seu batel, de noite, com vinte homens e se foi á nau de Gaspar
Quesada e entrou a falar com elle, e o prendeu, e fez capitão da nau um seu
parente, para logo todos três irem abalroar o Magalhães e o matarem. E logo
renderiam a outra nau de João Serrano e tomariam o dinheiro e fazenda, que
esconderiam, e se tornariam ao imperador, e lhe diriam que o Magalhães os
levava vendidos e enganados, fazendo traição a seus regimentos, porque ia
navegando pelos mares e terras d'el-rei de Portugal: do qual feito primeiro
haveriam seguro do imperador. Com que se ordenaram na traição, que lhe saiu mal.
Usou Fernão
de Magalhães de extrema severidade para com os capitães, que se haviam
alevantado contra elle e andavam apostados para o matar. Foi summarissimo o
processo, com que os sentenciou a pena capital, porque nem houve sequer
allegação, antes sem que n'isso cuidassem, nem houvesse tempo para prevenções,
os salteou em seus navios e fez n'elles justiça cruelissima. Porque a Luiz de
Mendonça o colheu á traição, e em sua mesma caravella o degolou com uma adaga
(segundo conta Gaspar Corrêa), o meirinho Ambrósio Fernandes, com quem se
concertara para este effeito o capitão-mór. E chegando Magalhães á nau de Luiz
de Mendonça, com a gente armada e
artilheria prestes, elegeu para capitão a Duarte Barbosa, homem portuguez seu amigo, e mandou enforcar
nas vergas seis homens, que se alevantaram contra o meirinho, e pendurar pelos
pés o corpo de Mendonça que o vissem das outras naus. Veiu depois Fernão
de Magalhães junto da caravella de João de Cartagena, e por ardil de
que usou para evitar um recontro, onde poderia derramar-se muito sangue, entrou
na embarcação e ao Cartagena prendeu e mandou
esquartejar com pregão de traidor; e elegeu por capitão a Álvaro de
Mesquita, que o rebelde castelhano tinha
preso em ferros, porque o reprehendeu do alevantamento que fazia.
É muito para acreditar que
os hespanhoes, de que pela maior parte se compunha a tripulação, tivessem ojeriza
ao capitão-mór, porque sendo portuguez, posto que homem principal e promotor da
expedição, recebera o governo d'aquella empresa. O que já succedêra com o genovez
Colombo, agora com maior rigor e desacato á autoridade de que ia revestido, o intentaram
os rebeldes capitães contra Fernão de Magalhães. Já muito de antemão
iam os castelhanos apparelhados para a desobediência e rebellião, como claramente
o patenteavam as cartas recebidas pelo Magalhães em Tenerife. Não era apenas
a vida que o ilustre portuguez havia de perder, se chegasse a vingar a sedição dos
hespanhoes. Era a própria empresa em que se empenhava, e a gloria que já sonhara
para si, e os loiros immortaes de ousado aventureiro e de feliz descobridor. Dissimular
a conjuração e esperal-a resoluto, era dar a victoria segura aos inimigos. Reprehender
nos sediciosos o mau feito que intentavam, e oppor o prestigio moral da autoridade
á força material dos conspiradores, era arriscar-se a ver desacatada a auctoridade
de sua pessoa, e entregar, com resignação de bom christão, mas com imprevidência
de mau soldado, a cabeça ao ferro dos conjurados, e a idéa ao desamor e desamparo
de quem tinha delineado trocar a gloria própria, e o serviço do imperador, por
alguns punhados de oiro, com que se volveria á pátria». In Latino Coelho, Fernão de
Magalhães. Escritos Literários e Políticos. Coligidos e publicados sob a
direcção de Arlindo Varela, Editores Santos & Vieira, Empresa Literária
Fluminense, Imprensa Portuguesa, Lisboa, 1917.
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