O Princípio
«(…) Ao argumentar desta maneira, no mesmo fôlego, o rei ainda sem
coroa desejava mais uma vez pôr fim a uma conversa que nunca deveria ter
ocorrido. O que estava em causa naquele momento de júbilo para o infante Duarte
era que o infante desprezava os atalhos do destino. Ignorava os conselhos de um
sábio que o assistia bem, há anos, expondo-se às vicissitudes do que são as
fronteiras do compreensível. Para quê tanta
intransigência? Para quê desafiar
os astros? Porque não ceder, fazer um intervalo, esquecer por momentos que Deus tudo comanda? Naquele
tempo, sem hora marcada, uma cultura do havemos
de chegar ou do quando chegarmos está
na hora, a ideia de exactidão horária era destituída de sentido. No entanto,
para o agoirento judeu, havia um tempo útil em que se poderia aceder a tudo
favoravelmente e um tempo ruinoso para o qual se deveriam tomar todas as
precauções. As suas recomendações, tão elaboradas como insistentes, iam nesse
sentido. O que propunha a Duarte era um tempo proveitoso que o
favorecia e não uma trapalhada saída da cabeça de um duvidoso feiticeiro. Por isso,
a rejeição do rei, no entendimento do mestre, significava ruína, desgraça, um
tempo cruel. Tudo fazia crer que o cientista tinha terminado os seus argumentos.
Eis senão quando, ruminando entre dentes frases imperceptíveis, qualquer coisa
inaudível logo tomou caminho atrás de Duarte. Não conseguiu. Os irmãos do
futuro rei, que o seguiam de perto, sustiveram-lhe o passo, aproximando o rosto
deles ao do mestre, numa ameaça de ferocidade e dureza. - Estugai os passos se
não quereis o fim eterno deles - disse-lhe João, o mais determinado dos três
infantes presentes, ou não fosse ele o condestável do reino.
Apanhado por todo o poder do reino, mestre Abraão Guedelha estacou, pronto
para obedecer, sem deixar mesmo assim de fazer uma última tentativa no sentido
de virar a atenção do homem que lhe mostrava as costas. Queria ver-lhe o rosto,
perceber até que ponto podia convencê-lo, mas o que viu foi um rosto alterado,
negando o que se dizia dele: que tinha olhos moles num rosto enverrugado. Enquanto Abraão Guedelha aguardava
suspenso nas mãos fortes dos infantes, Duarte, incomodado pela insistência,
preparou-se então para castigar o mestre. Já perto dele, encarou-o, indignado,
abrandando os ímpetos ao reparar na imagem distorcida do homem que tanto
estimava. Na sua frente não estava o sujeito de extrema bondade, nem o
reverente físico que todos os dias ouvia as suas queixas, o aconselhava e
regulava os seus males. O rosto de Guedelha, desde há instantes, tinha começado
a sofrer alterações significativas sob o comando da sua macrocéfala cabeça. A
testa e os sobrolhos franzidos concentravam-se, pressionando-lhe os olhos numa
máscara de autoridade que não lhe era permitida. Os lábios, diminuídos pela
pressão dos maxilares um contra o outro, sugeriam um rosto perturbado, pronto a
actuar, sem medir as consequências dos seus actos. Via-se bem, o mestre tinha
há muito ultrapassado não só o risco como a sua própria personalidade.
- Senhor, perdoai a este servidor
que tanto vos quer a ilimitada ousadia da persistência. Não o faria senão vos
conhecesse tanto e amasse mais. - A cena era desanimadora. Toda a corte em vésperas
da festa real se virou para o sábio, olhos postos naquela peça fora da
engrenagem, surpreendidos pela desfaçatez de um nada sem existência própria,
como o reconheciam. Todos juntos, no terreiro do Paço da Alcáçova do castelo de
São Jorge, a nata da nobreza portuguesa apresentava-se a preceito para festejar
a subida ao trono do elemento mais velho da Ínclita Geração.
Olhavam-se incrédulos, esperavam ouvir Duarte dizer as palavras certas,
assistentes da singular representação, sem interferirem. Além dos infantes, que
nunca perdiam de vista o rei, e do conde de Viana, Pedro, alferes-mor de Duarte,
que empunharia a bandeira real no acto de elevação, estavam tambémalguns
representantes da Igreja portuguesa, encabeçados por Álvaro d'Abreu, bispo de Évora,
encarregado das palavras que precederiam a entronização. No meio da fuzilaria
dos olhos, o pobre Abraão Guedelha elevou a voz, reunindo ainda mais as
atenções sobre si. Esforçava-se agora para que, no meio daqueles homens de
semelhante condição, entendessem a sua mensagem e a defendessem junto do provável
rei, porque valia a pena um último esforço, mesmo sabendo que corria todos os
riscos. - Escutai as minhas alegações, senhor, suplico-vos. Depois, se achardes
que mereço, se pensardes que fui longe demais, submetei-me ao vosso veredicto».
In
Jorge Sousa Correia, O Mistério do Infante Santo, A Revelação dos Pecados da
Ínclita Geração, Clube do Autor, Lisboa, 2013, ISBN 978-989-724-067-6.
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