«(…) Que quadro de desusada folia aquele! Um rei bailando nas ruas como
um simples vizinho e uma corte desfeita, dançando de roda, à luz dos archotes,
como uma confraria de mesteirais, com alferes, estandarte e bombos. E mais
felizes se sentiam assim, desobrigados de si e da máscara que o nascimento lhes
afivelara, trocando a presunção da hierarquia pela embriaguez dum passo de
dança. A felicidade fica a ser o contrário do cumprimento dum dever, pois este
é a canga do mundo enquanto aquela a liberdade de não haver tempo. Quando
despontaram do lado do Montijo os primeiros sinais da alvorada, andava meia
cidade metida naquela balbúrdia de danças e brinquedos. Os próprios mazorrais,
de tochas acesas na mão, bailavam no meio da multidão. Aos clarões da combustão,
viam-se-lhes os olhos luzir de inocência e os dentes escuros e estragados
sorrir de alegria. Pediu o rei ao paço as trompas de prata que aí tocavam aos
ofícios e mandou-as por todas as ruas da cidade alvoraçar seus moradores. Dois
pregões anunciavam após elas que ao quarto de alva todos descessem ao Rossio,
na cerca do mosteiro onde o novo conde velara armas e fora armado cavaleiro, que
aí se armariam tendas, se cozeria pão, se comeria vianda e se beberia vinho.
Acorreu a cidade em peso e ali continuaram as trompas a tocar o seu som de graça
e o rei a bailar as suas nostalgias. E em comunhão agora de víveres, como no
tempo de Isabel de Aragão, todas aquelas gentes se maravilharam de si e da
vida.
A novidade deste rei são as danças e os trebelhos, ouviu-se depois,
quando tocou a noa e muitos procuravam já a sombra dos pomares ou das cercas
para se afundarem no sono. Seriam com certeza as danças a novidade deste rei,
que o bodo era já de tradição. Não se percebia é que essa raridade era o fruto
duma solidão. Recreios e folguedos serviam para apagar o rasto do rei,
desnorteando por momentos os fantasmas da insónia e da saudade, que pungiam
mais que gancho de arpão e perseguiam mais que esfomeada águia. Ao mesmo tempo
que João Afonso Telo assim corria a São Domingos para velar armas e tomar o
título de conde, sossegava Guiomar Pacheco, sua esposa em Vila Real com os
filhos e os sobrinhos. Era uma mulher vulgar e industriosa, de saúde rija, que
punha toda a sua vontade na boa ordem de sua casa. Diogo Lopes Pacheco, seu
irmão, não hesitara, para quebrar as inquietações do rei ou para agitar o
sangue novo do príncipe, em se fazer um dos assassinos de Inês; ela por
sua vez não temeria em abocanhar o diabo para preservar o tecto. Ficava-se por
aí, mas isso chegava para a tornar no eixo certo daquela empresa.
Além disso, sabia procurar os auxiliares que punham em seu redor aquilo
que lhe faltava. Esperava que o marido entrasse na sua nova dignidade, para
tomar a seu cargo a mudança para o paço de Barcelos. Queixava-se ali, em Vila
Real, dos rigores da longa invernia, com os frios assustadores do Marão. Sentia
as crianças sofredoras e estava desejosa de as ver nas imediações do oceano,
longe das sisudas e ferozes serranias. O largo mar, varrendo as areias claras
das praias, punha no ar uma humidade que temperava o ar e adoçava a vida. Barcelos,
com as casas encavalitadas sobre as águas do rio Cávado, era um burgo enfeitado
e colorido, com o rumor verde dos pinhais por perto. O mar estava a três
léguas, a sudoeste, no termo daquele fio de água prateada que nascia nas
penedias do norte e deslizava depois, generoso e lento, nas terras baixas, fecundando
bosques e pastagens. Havia quem garantisse que nas asas do vento vinham ali bailar
glóbulos de areia; outros afirmavam que no silêncio, lá para as bandas do poente,
se ouviam as contendas mitológicas das ondas do oceano. Assim como assim,
sentia-se, contra aquela linha da terra, pulsar o coração de madeira da comarca
do Minho, essa região ruidosa e confusa, fervendo de lutas e gentes. No alto,
ficava o castelo, com a torre paceira. Para lá se mudou Guiomar Pacheco com o
clã dos Teles de Meneses. Eram oito crianças, cinco rapazes e três raparigas, e
um préstito sem fim de pajens e donzelas, de escudeiros e cuvilheiras, de aias,
moços e servos domésticos. Demais, havia ainda os rurais adstritos ao paço
condal, que não estavam autorizados a pôr o pé na casa, apenas no logradouro da
cerca, vivendo a sua vida de bois laboreiros nas choças miseráveis do rio e dos
bosques. João Afonso Telo, o conde, veio no fim dessa sazão, quando os calores
perdiam intensidade e o rei afogava sozinho as suas mágoas no corpo. Uma antiga
aia de Inês, que agora lhe acolhia os filhos e lhe cuidava de quando em
quando da casinha do Moledo. Liberto por um momento da apertada exigência do
rei, que era sempre viageiro, pouco se fixando e tudo pedindo, o Telo pôde
estanciar duas semanas junto da esposa e da prole. O antigo paço de Pedro
Afonso, depois das obras de reconstrução que acabara de ter, era muito mais convidativo
que o acanhado solar de Vila Real, uma das primitivas casas dos Meneses
durienses. Era espaçoso e sobranceiro, chamando a si uma vasta e rica propriedade
rural, a perder de vista, onde trabalhavam os servos e os colonos foreiros. Tratava-se
duma verdadeira alcáçova fortificada, com igreja, paço e torre ameada, sinal
dum largo poder, que ficava logo por baixo do da coroa.
Não tardou Pedro em chamar o seu primeiro vassalo. Aquele episódio com Teresa,
acontecido quase por acidente no paço da Atouguia, chegara ao termo. Durara o
tempo dum incêndio, mas o pavio derretera já de vez a cera. Foi o primeiro amor
de ocasião que Pedro viveu depois da morte da linda Inês e como todos os outro a que se entregou de
seguida foi curto e quase anónimo. Cevava o instinto, saciava a sede e ia
embora, de olhos fechados. Durante mais de dois anos, aquele impulso que nele sempre
fora uma força estupenda a única que seria capaz de acordar a doida paixão duma
refinada donzela como Constança Manuel, andara retraído
com o nojo que se seguira à perda de Inês. À medida que o tempo passara e
aquela vertigem de náusea se desvanecia, voltara-lhe de mistura com a nostalgia
do passado e da sua perda o desejo de tocar o corpo sedoso duma mulher. Era um
colosso com perto de dois metros, membrudo e bem constituído, de coxas
musculosas e braços de pedra. Tinha, no ano em que recebeu a coroa, apenas a
idade de trinta e sete anos; há bem mais de dois que não conhecia amores ou a
influência do instinto, de tão envolvido que andara na dor». In
António Cândido Franco, Vida Ignorada de Leonor Teles, Edições Ésquilo, Lisboa,
2009, ISBN 978-989-8092-59-5.
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