quarta-feira, 30 de outubro de 2013

Elogio da Loucura. Erasmo. «E a severa Diana sempre esquecida do sexo e dedicada à caça, perdida de amores por Damião? Quisera que Momus lhes dissesse as verdades, como outrora acontecia com frequência»

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Fala a loucura
«(…) Mas para que havemos de falar dos mortais? Percorrei o céu todo; consentirei que o meu nome seja um opróbrio a quem encontre um só deus que seja apreciado fora da minha clientela. Porque é que Baco é sempre um efebo de bela cabeleira? Porque anda sempre embriagado, entre festins, danças, santos e jogos, e não tem comércio algum com Pallas? Tão pouco lhe apraz passar por sábio, que só lhe agrada ter por culto as farsas e os ludíbrios. Não se sente ofendido pelo provérbio que lhe atribui um cognome fátuo, o de mais maluco do que Morico. Provém este nome de Morico da estátua colocada à entrada do templo, estátua que os vindimadores costumam manchar com uvas e figos para seu divertimento. Quantos sarcasmos proferiu contra ele a comédia antiga! Dizia-se até: insensato deus, digno de ter nascido de uma coxa. Mas quem não preferiria ser este deus fátuo e insensato, sempre festivo, sempre juvenil, sempre portador de divertimentos e prazeres, a ser o próprio Júpiter, temível e pouco seguro para todos, ou o velho Pan que semeia o terror, ou Vulcano sujo por causa dos trabalhos da sua oficina, ou até mesmo Palas que olha de soslaio e ameaça sempre com a sua Gorgona e com a lança terrível?
Cupido nunca deixa de ser menino? Porquê? Porque é frívolo, não pensa nem faz coisa sensata. Porque é que é sempre bela a forma da Vénus áurea? Porque tem certa afinidade comigo, porque tem no rosto a cor de meu pai, e tal é a causa por que Homero a denominou Afrodite áurea. Além disso, sorri perpetuamente, se acreditarmos nos poetas, ou nos seus émulos, os escultores. Que divindade foi mais consagrada pelos romanos do que Flora, mãe de todas as volúpias? Se lermos, com atenção Homero e os outros poetas, cremos que até os deuses mais sérios caem em situações de loucura. Será necessário rememorar-vos os amores de Jove fulminante? E a severa Diana sempre esquecida do sexo e dedicada à caça, perdida de amores por Damião? Quisera que Momus lhes dissesse as verdades, como outrora acontecia com frequência; mas eles zangaram-se e precipitaram-no sobre a terra com a Discórdia.
Até, porque o que ele sabia importunava a felicidade dos deuses. Mas nenhum mortal se digna dar hospício ao exilado, nem os príncipes o admitem nos seus palácios onde a minha companheira Colácia ou seja, a Lisonja, tem o primeiro lugar; mas esta é tão amiga de Momus como o lobo do cordeiro. Desde que o exilaram, os deuses divertem-se de modo mais licencioso e mais prazenteiro. Libertos do censor, levam uma vida fácil, como diz Homero. Quando os alegra o Príapo de pau de figueira! Quanto os divertem os furtos e os ardis de Mercúrio! Vulcano, convidado pelos deuses é o bobo dos festins: excita-se o riso, ou claudicando ou dizendo coisas ridículas. E Sileno, esse velho lascivo, dança a cordaca com o pesado Polifemo enquanto as Ninfas saltam a gimnopedia. Sátiros semicaprinos representam as farsas atelanas, Pan provoca o riso geral com uma cantilena rústica e insulsa, que eles preferem às canções das Musas, principalmente quando o néctar lhes começa a subir à cabeça. Como hei-de referir-me ao que os deuses fazem depois de terem bebido copiosamente? São coisas tão estultas que eu não posso impedir-me de rir. Mais prudente é calar-me, como Harpocrates não vá algum deus coriqueu ouvir-me narrar coisas que Momus, não pôde dizer impunemente». In Erasmo de Roterdão, Elogio da Loucura, tradução de Álvaro Ribeiro, colecção Filosofia e Ensaios, Guimarães Editores, Lisboa, 1987.

Cortesia de Guimarães Editores/JDACT