quarta-feira, 23 de outubro de 2013

História do Pudor. Jean-Claude Bologne. «É um sentimento em que se manifesta, sob a forma de uma tensão entre dois níveis de consciência, a indecisão das funções superiores de escolha dos valores, em presença de objectos que exercem uma forte atracção sobre a tendência instintiva inferior»


Cortesia de wikipedia e jdact

Definir o pudor
Pudores masculino e feminino
«(…) O pudor feminino vai ter uma vida dura, uma vez que há-de inspirar, em 1919, a engenhosa teoria do pudor de Merejkovski. Para o poeta russo, foi a mulher a primeira a sentir a necessidade de ocultar os órgãos sexuais: limitou-se a obedecer ao instinto dos animais, que fogem do macho antes do acasalamento, ou a imitar a precaução das orquídeas, que protegem os seus estames com um avental, impedindo desse modo a autofecundação. Objectivo profundo deste pudor feminino universal? Impedir o cruzamento consanguíneo. Com efeito, se o pudor não impedisse a mulher de acasalar com o primeiro macho que encontrasse, escolheria muito naturalmente os seus irmãos, não iria procurar aplacar os seus desejos na tribo vizinha... Hipótese sedutora, mas explicaria tanto o pudor masculino como o feminino e, apesar dos muitos anos que o autor pretende ter passado a aperfeiçoá-la, singularmente falha de rigor. Demonstra, de qualquer maneira, a persistência dessa concepção sexuada do pudor, que tem raízes na mais remota antiguidade e só incompletamente foi eliminada.

Pudores individual e social.
Na praia ou na avenida, o fato de banho não tem o mesmo significado. O pudor individual, o que tem cada qual em mostrar-se (ou em ver-se!) nu ou pouco vestido, reforça-se portanto com um pudor social que define, em função da época e do lugar, os limites tolerados à exibição. A moral, vestida de grego ou de latim, conhece também a distinção entre ethos (regras de conduta individuais) e habitus (regras de vida social). No domínio de que nos ocupamos, seremos portanto levados a distinguir pudor (individual) e decência (social). A fronteira entre ambos é por vezes subtil. As pioneiras do monoquíni tiveram a experiência: uma delas foi condenada em 1965 por ter usado no passeio público um traje que, a alguns metros dali, na praia, nada teria de chocante... É para além destas distinções que se recorta o verdadeiro perfil do pudor: mais que uma reacção à nudez ou a uma determinada parte do corpo, é uma questão de tomada de consciência. O pudor é um processo dinâmico, que deveria definir-se em termos de sociologia: só nasce a partir do momento em que percebemos que estamos nus. O mito de Adão e Eva ganha aqui enorme actualidade: nada, a não ser uma concepção estatística do pudor, mudou entre a inocência original e a consciência nascida do fruto da árvore da ciência.
A intenção de encerrar o pudor em regras estáticas tornou a legislação sobre a moralidade pública tão absurda quanto arbitrária. As fórmulas vagas que tentaram iludir o problema foram facilmente contornadas: a partir de quando uma nudez é ou não chocante? A partir de quando o erotismo se torna pornografia, o à-vontade provocação e o nu artístico obscenidade? Foi também o erro do naturismo, anterior à guerra, acreditar que, tirando a roupa, se reencontrava a inocência do paraíso perdido. Os homens que na Idade Média se banhavam nus não tinham a mesma ideia de pudor que os banhistas modernos, que sabem que, tirando o fato de banho, estão em contravenção às leis modernas e ao código penal. A moral dispõe de dois termos muito práticos para designar esta distinção: é declarado imoral aquele que viola as regras que ela dita; amoral, em contrapartida é aquele que as não conhece. A despeito da minha repugnância em atulhar a língua de neologismos supérfluos, falarei de apudor para designar esta ausência de pudor que, em certos domínios, precedeu a promulgação de éditos sobre decência pública; o despudor, será uma violação consciente das regras do pudor. Entre estas duas praias estáticas que são a vergonha, e o apudor vamos encontrar esse ponto de passagem, um pudor ou um despudor dinâmicos. Entre liberdade e escravidão há servidão e libertação. São estes os processos que nos interessam, bem mais difíceis, sem dúvida, de traçar através de testemunhos necessariamente estáticos.
Apesar do carácter tendencioso da sua análise, cabe a Scheler o mérito de ter posto em evidência o dinamismo do pudor. Os animais, refere, não têm pudor; é mesmo difícil imaginar um Deus pudico. O pudor, característico do homem, nasce, segundo o filósofo alemão, da consciência que o homem tem de ser um ponto), uma passagem entre duas ordens de ser e de essência, entre Deus e o animal, e de estar submetido, simultaneamente, às servidões do corpo e às exigências do espírito. É um sentimento em que se manifesta, sob a forma de uma tensão entre dois níveis de consciência, a indecisão das funções superiores de escolha dos valores, em presença de objectos que exercem uma forte atracção sobre a tendência instintiva inferior. Esta hierarquização dos valores, base de uma filosofia nietzscheana que anuncia o eugenismo nazi, surge na evolução das espécies com o desenvolvimento progressivo da consciência. As plantas mostram os seus órgãos sexuais no topo; os animais relegam-nos para o lado de baixo do seu corpo e os homens escondem-nos, sem dúvida na esperança de virem a tornar-se anjos sem sexo. Esta subordinação das actividades de reprodução aos interesses de um todo biológico corresponde à vitória do instinto de conservação individual sobre o instinto de conservação da raça». In Jean-Claude Bologne, Histoire de la pudeur, Olivier Orban, 1986, História do Pudor, Editorial Teorema, Círculo de Leitores, 1996, ISBN 972-42-1374-9.

Cortesia de CL/JDACT