terça-feira, 15 de outubro de 2013

A Sombra do Templário. Século XIII. Núria Masot. «Barcelona tinha crescido por todos os lados e a poderosa muralha romana que durante séculos havia protegido o seu perímetro era agora insuficiente para conter a maré humana que albergava. A tendência para aproveitar os mais pequenos espaços…»

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A Viagem
(…) Arnaud d'Aubert viu como o capitão veneziano se afastava com expressão trocista. Tinha conseguido aborrece-lo durante meia-hora o que o enchia de satisfação. Aquele maldito arrogante tinha-o suportado unicamente por causa da avultada soma paga. Sentia um enorme desprezo pelos venezianos para quem não existia outra ideia senão a do lucro; nada os movia mais rapidamente do que uma boa quantidade de ouro, incapazes de pensar noutra coisa com aquele cérebro mercantil. Esteve quase a soltar uma gargalhada; aquele cretino presunçoso divertia-o e como a viagem era suficientemente longa e entediante tinha de aproveitar todas as ocasiões para se distrair. E conseguia. Uns dias antes, abeirara-se do velho judeu para lhe dizer, em voz baixa, que ouvira rumores de grandes tropelias na judiaria de Barcelona, causando-lhe grande sobressalto. Rejubilara ao contemplar o pânico no rosto do ancião,
Tocou na perna esquerda, tentando acalmar a dor que subia, em linha recta, até aos rins. Aquele maldito teutão de Acre desferira-lhe uma punhalada certeira, deixando gravada na mente de D'Aubert a recordação da cara dele, Seta muçulmana ou rixa de taberna, quem é que se importava com isso, pensou taciturno. A lembrança do teutão punha-o de mau humor e nem sequer a imagem das curvas suaves da adolescente árabe por quem tinham lutado, conseguiu acalmar a dor, intensa e aguda, parecida com a mesma adaga que o trespassara. Talvez seja sinal de tempestade, ruminou, a dor é sempre um aviso; tão perto do porto... só faltava que uma tempestade nos fizesse ir a pique. Uma sensação de enjoo subiu-lhe à garganta, como um alimento em más condições. Precisava de alguém com quem se divertir. Esticou as pernas, olhando em volta, procurando nova vítima. A tripulação parecia mais activa e atarefada que de costume e o mar mudara de cor, o azul intenso tinha desaparecido para dar lugar a um cinzento de chumbo. Agarrou-se aos cordames que percorriam o navio, afastando-se da popa. Tinha visto Guils e esse não lhe parecia boa companhia. Aquele homem não era para brincadeiras e no olhar dele adivinhavam-se sinais de perigo indefinido, como nos olhos do alemão da taberna, cravados na sua memória como a maldita adaga dele.
Começou a cair uma chuva fina e muito fria, e D'Aubert encaminhou-se para o porão. Bom, de certeza que ali encontraria o comerciante catalão a vigiar a mercadoria, a verificar cada uma das cordas, cada um dos sacos.,. Podia ser um bom motivo de distracção! Tropeçou num membro da tripulação e soltou uma imprecação em voz alta, atravessado pela dor que, trespassando-lhe os rins, decidira instalar-se-lhe no cérebro, O primeiro impulso foi virar-se e aplicar um fortíssimo pontapé no responsável do encontrão, mas estacou imediatamente, gelado diante do olhar sarcástico do outro que parecia provocá-lo, esperar a reacção dele. Dá-me um bom motivo para te matar, pareciam dizer aqueles olhos. Afastou-se de um salto daquele homem que lhe provocava aquele calafrio esquisito e penetrante e descobriu, estupefacto, que se encontrava diante do olhar de um assassino. Retrocedeu passo a passo, lentamente, sem perder de vista o indivíduo que lhe sorria, até chegar ao extremo da proa, o mais longe possível. A Arnaud d'Aubert passara-lhe a vontade de se divertir.

Barcelona
A cidade de Barcelona estava à vista e o capitão D'Amato exalou um profundo suspiro de alívio. Os últimos dias tinham sido um verdadeiro pesadelo, o maldito frade fizera-lhe a vida negra, exigindo-lhe que fechasse o velho judeu no porão; o comerciante Camposines não parara de se queixar do serviço e o mercenário zarolho há dois dias que não se mexia do catre. Começava a duvidar do bom negócio que tudo aquilo lhe rendera e o seu maior desejo era ver-se livre daquela ralé de passageiros e partir rumo a Veneza. Barcelona tinha crescido por todos os lados e a poderosa muralha romana que durante séculos havia protegido o seu perímetro era agora insuficiente para conter a maré humana que albergava. A tendência para aproveitar os mais pequenos espaços convertera o bairro antigo num labirinto de ruelas estreitas e escuras. A necessidade de espaço obrigava a construir casas pegadas à antiga muralha romana, aproveitando o muro grosso para edificar ambos os lados por meio de arcos entre as torres». In Núria Masot, A Sombra do Templário, colecção Enigmas da História, Sicidea, 2007, ISBN 978-84-611-4998-8.

Cortesia de Sicidea/JDACT