domingo, 20 de outubro de 2013

El rei João II. Crónica Esquecida. Seomara Veiga Ferreira. «Passou pelo opróbrio de escutar todo o caminho os batedores de El Rei a proferir ofensas, palavras de traição, nomes ordinários, e ‘saber que um desses patifes era criado do Infante Henrique, seu irmão’»

jdact

A Morte do Cisne no Campo do Leão
«(…) Durante esse tempo passeou-se com o seu exército por Portugal sempre espiado, de longe, pelos batedores do rei e seus apaniguados, a nobreza chefiada pelo duque de Bragança. Ele iria pedir justiça a El-Rei e lá partira com mil cavaleiros, cinco mil peões e muita carriagem de bois e de bestas. E, entretanto, o que explicavam ao rei os seus inimigos? Talvez: - Cuidado, senhor. Ele, vosso tio, o Infante, é genro do pretendente ao trono de Aragão e, pela mulher, vossa muito amada tia D. Isabel, neto dos reis Pedro de Aragão e da rainha Sibila. Não se sentirá ele mais vassalo de Aragão que de El Rei Afonso, seu sobrinho? Vós sois a Nação, senhor. Confiai nele e perdereis o vosso Reino. Pedro, deixando a mulher em lágrimas, levou com ele, a partir de Tomar, os dois filhos, Pedro, o mais velho, e Jaime. Aí dispensou o grande número de servidores da sua casa. Na realidade, Pedro atravessara as terras do conde de Ourém mas não era ele, ainda, o condestável do Reino? E não ia, com o pai e os seus, na direcção do Rei? Como bandeiras, duas, a sua e a do filho, e em ambas as divisas, Lealdade, de um lado e Justiça e Vingança, do outro.
E passaram por Leiria, Alcobaça, Rio Maior... Pedro aconselha-se. Segue, ou manda mensageiros a El Rei? Mas ele não seguiu o Conselho. Recordo-me de uma noite, enquanto bebíamos vinho quente e uma malga de carne de vaca desfeita, pouco antes do suplício em Évora do neto de Afonso de Barcelos, Pedro perguntar a Rui de Pina que achava ele do assunto. Pina fugiu à resposta. Zurara esse, embora mais directo, fugia também mas sei que Pina tinha pelo Infante das Sete Partidas uma imensa e apaixonada simpatia. Pedro tinha pensado avançar sobre Lisboa embora o avisassem de que isso seria perigoso. Os apaniguados do duque e do Ourém tinham levantado a população contra seus servidores a ponto, diziam alguns correios, de os esquartejarem e exporem os bocados dos corpos ao sol. Lisboa, a sua cidade, que ele adorava e onde nascera nesse já longínquo dia de 9 de Dezembro de 1392... Nascera sob o signo do Archeiro Celeste, para seu mal (e para seu mal porque, como todos os seres do seu signo, não era homem que lhe escolhessem o destino ou sequer que permitisse que alguém o pensasse). Se tivesse podido entrar em Lisboa, com a cidade na mão, talvez tivesse possuído um trunfo de peso contra as diatribes do irmão bastardo e, além do mais, o jovem rei talvez pensasse duas vezes, porque jamais o tio e sogro quereria ou desejaria arrebatar-lhe o trono: pelo contrário, assegurar, baseado no poder jurídico, o poder real, fortalecer a monarquia e fazer o nivelamento de toda a nobreza sob a Coroa, sem que ninguém pudesse em poder económico, homens, fortalezas e gente, estar acima da Coroa. O rei basear-se-ia no povo, na força do terceiro Estado e poderia, então sim, governar. Os tempos mudavam e o Infante era soberanamente consciente disso. Naquele domingo em que o Infante partiu a pensar nas colinas vestidas de branco da sua cidade, e a todos convenceu disso, já, nada lhe restava de esperança. A cidade fechara-lhe as portas porque os apoiantes do arcebispo e do Ourém, do Coutinho, de todos os abutres que adejavam já ao cheiro da próxima carnificina, tudo tinham frustrado e decidido.
A caminhada foi sempre acompanhada de desmandos e aleivosias. De repente os ventos potentes da desordem, do ódio, da loucura caíram sobre Pedro e os seus homens. Passou pelo opróbrio de escutar todo o caminho os corredores e batedores de El Rei a proferir ofensas, palavras de traição, nomes ordinários de arruaça, alguns tão torpes, e saber que um desses patifes era criado do Infante Henrique, seu irmão, um Pero Castro, fidalgo que antes se comprazia em lhe solicitar favores... Agarraram-no os homens de Pedro e levaram-no à sua presença: - Ingrato e traidor! Tu que tens a coragem de proferir tais vilezas contra mim a quem deves tantos favores!... Depois, de cabeça perdida, agarrou num pau, desancou-o, rachando-lhe a cabeça, matou-o e mandou degolar e enforcar os outros. Nunca ninguém lhe tinha observado uma tal sanha. Era como se naquele acto de violência e feroz brutalidade ele lavasse todas as agonias e desilusões da sua alma. E talvez se tenha recordado, no dia anterior, quando ao lado de Álvaro, ia pensando e proferindo para si:

Temps pleins d'orreur qui tou fait faussement,
Aage menteur plein d'orgueil et d'envie,
Temp sanz honeur e sanz vray jugement,

E como se Álvaro lhe adivinhasse o pensamento, finalizara, sorrindo, olhando-o e batendo-lhe no braço amigavelmente:

Aage en tristesse qui abrege la vie.

Sem dúvida assim seria e fora para os dois e para os que ficariam até ao fim, porque muitos iriam ainda ficar... Até que a idade de tristeza que encurta a vida fizesse o seu definitivo julgamento noutro espaço, acima das nuvens brancas que fugiam naquele céu azul magnífico, empurradas pela brisa que soprava de norte. Os inimigos de Pedro não poderiam jamais compreender que o remorso se alimenta com o tempo e o ódio também. A culpa arrasta-se ao longo da nossa vida colada à nossa sombra e se o Sol não a faz demarcar junto de nós, a culpa, essa, insinua-se na alma, nos mais mesquinhos actos, em todos os instantes de dor ou alegria, porque a sua memória chega a ser eterna. Os inimigos do Príncipe regozijavam só de ver as insígnias dos estandartes». In Seomara Luzia da Veiga Ferreira, Crónica Esquecida d’el rei João II, Editorial Presença, Lisboa 1995, 4ª edição, Lisboa 2002, ISBN 972-23-1942-6.

Cortesia de Editorial Presença/JDACT