quarta-feira, 23 de outubro de 2013

Os Filhos do Padre Anselmo. Literatura. Sá D’Albergaria. «Nenhum mal te acontecerá por isso, a tua vontade será respeitada, a tua independência mantida. Mas não saberás dizer onde estiveste nem as pessoas com quem falaste. - Poderei dizer que falei contigo..., gracejou o outro»

Cortesia de wikipedia e jdact

Os irmãos da mão negra
«O relógio dos Clérigos tinha acabado de fazer soar pausadamente as doze badaladas da meia-noite. O tempo estava brusco e o vento, soprando da barra em frias e cortantes rajadas, punha arrepios nos transeuntes que, levantadas as golas dos casacos e as mãos metidas nos bolsos, seguiam a passo apressado, recolhendo a casa, sob a ameaça de um temporal desfeito. Era em fins do Outono. As árvores do jardim da Cordoaria, varejadas pela ventania aspérrima, despiam-se das suas últimas folhas amarelecidas, num agitado e sussurrante protesto de espoliadas. Quem a essa hora passasse pelo Campo dos Mártires da Pátria, veria, encostado a uma das árvores que orlam o jardim, defrontando com a praça do Peixe, um vulto imóvel e indiferente ao tempestuoso rugir daquela noite agreste e frigidíssima. Parecia esperar alguém, porque, ao ouvir bater a meia-noite no relógio da torre, levou a mão ao bolso e, aproximando-se de um dos candeeiros da iluminação pública, consultou o seu relógio. - Aquele anda adiantado cinco minutos, murmurou. E deu alguns passos distraidamente como para iludir a sua impaciência. Agora, que o podemos ver ao reverbero do lampião, notaremos que é um rapaz de 18 anos, decentemente vestido e de gentil presença, não obstante as feições finas e delicadas quase lhe desaparecerem encobertas pela aba larga do seu chapéu à Mazzantini. Tinha apenas dado um curto passeio no prolongamento do jardim, quando do lado da rua do Calvário avançou a trote rasgado um trem, que parou em frente dele. - És tu, Paulo? - disse de dentro uma voz. - Sou. - Entra depressa, que a noite está agreste! E a pessoa que falava de dentro abriu a portinhola, facilitando-lhe a entrada.
O mancebo saltou de um pulo para dentro do carro, a portinhola fechou-se, e os cavalos seguiram no seu trote largo, dobrando a rua da Restauração e subindo a da Liberdade até ganharem a rua do Rosario.
Sigamos aquele trem e ouçamos o diálogo que se trava dentro dele. Apenas o mancebo entrou, a pessoa que o chamara e que era um homem de 28 a 30 anos, desceu rapidamente as cortinas do carro e disse para o seu jovem companheiro: - Meu amigo, como já te expliquei, isto são negócios em que se requer a maior circunspecção e escrúpulo na observância das praxes. Hás-de consentir que te vende os olhos. - Acaso desconfias da minha lealdade, Jorge? - De modo algum. Mas é uma obrigação que o regulamento me impõe, e eu não posso faltar a ela sem trair o meu dever. - Pois bem, seja! O sujeito que ouvimos chamar Jorge tirou então do bolso um lenço e vendou com ele os olhos do companheiro. - Hás-de dar-me a tua palavra de honra que não tentarás arrancar a venda sem que para isso recebas ordem... - Dou. Mas se o fizesse? - Poderia isso custar-te a vida, meu caro. - Apre! - fez o outro, sorrindo, vocês são intransigentes!  - Está nisso a nossa força. Não violentamos ninguém a seguir-nos, damos ampla liberdade a cada um de rejeitar a nossa associação, mas defendemos a nossa existência e mantemos o nosso segredo. - É justo. - Assim, tu podes, até à hora de prestares o teu juramento, reconsiderar e exigir que te restituam a liberdade. Nenhum mal te acontecerá por isso, a tua vontade será respeitada, a tua independência mantida. Mas não saberás dizer onde estiveste nem as pessoas com quem falaste. - Poderei dizer que falei contigo... - gracejou o outro.
 - Que importa? Eu não sou uma associação. Comigo pode falar toda a gente... - Falemos sério!, tornou o moço que dava pelo nome de Paulo. - Asseveras-me que os intuitos dessa associação em que vou entrar são em tudo dignos das justas aspirações de um homem de bem? - Assevero-te que os irmãos da Mão-negra compreendem e cumprem à risca o nobre dever de se auxiliarem e defenderem mutuamente contra as prepotências sociais da nossa época. No nosso grémio desaparecem as diferenças de gerarchia e de dinheiro. Não há pobres, porque todos somos ricos da riqueza e da importância dos nossos irmãos. - Poderei então contar com o auxílio da Associação na conquista da mulher que amo? – Decerto, volveu o outro. - Tanto como amanhã qualquer de nossos irmãos poderá contar com o teu auxílio para a realização dos seus desejos. Isto é apenas uma associação de socorros mútuos, meu caro Paulo. A mulher que amas será tua desde que te filies no nosso grémio. Compreendes que toda a acção da Mão-negra se resume em tornar felizes e ricos os seus irmãos, porque dessa riqueza e dessa felicidade lhe advém a ela a força, o poderio, a importância». In Sá D’Albergaria, Os Filhos do Padre Anselmo, Livraria Chardron, Empresa Literária e Tipográfica, Lello & Irmão Editores, Porto, 1904.

Cortesia de Lello&Irmão/JDACT