Toma o ouro que o poeta dá. In
Sallete
Carta
a Pedro Sete
Pedro
«É,
com alegria que veio surgir sobre o papel os traços da minha caligrafia, há
tanto tempo sem escrever, há tanto tempo sem uma pausa na alma para o dentro a
dentro que me deixa penetrar no universo mágico que entre meus eus a poesia
tece. Escrevo-te hoje pela primeira vez. Em teus poemas referes-te à minha
presença, chamas-me a tua companheira, companheira que identificas com a
poesia. No acto de reflexão que sou, não fosse o acaso deste agora, não me
aconteceria pôr em papel branco com a minha letra nada disto que tantas vezes
tem sido núcleo da minha meditação sobre poesia, sobre a juventude necessária
que a poesia é, sobre o poeta que o jovem deve ser e, sobretudo, sobre o jovem
que o poeta é. Antes do teu chegar já eu te dizia o mistério que te ia procriando,
a voz com que te queria marcar poeta, acostumar-te às maçãs amargas, ao sal da
lua e às lições diárias da rua.
Vi-te
fechar no abrir de um segundo o mar intenso, o fervente febril que te suspendeu
rigor de seco quilha entre sinais. Tão sós a sós cantámos a certeza. Tua
palavra minha boca a transbordava. Sem nada se dizer um eco me respirou mais
pele de flor menina. Então ouvimos: arrasta e leva contigo a lama que rastejas,
o saibro que te rasga a carne. Arrasta e que teu ventre rasgue por quantas vezes
foi rasgado e ventre. As matinas tocaram a finados. Porque o barro era mole,
porque o espírito nos dizia em todas as coisas o seu nome, vimos-te, ó ser
único entre tudo o que foi e está para ser. Arrasta, voa teu sonho e cai
vertical no abismo limite do que acaba e começa, no agora em trânsito que a
aurora anoitece, segundo lince de tempo que não repete, capacho do azul ao entardecer,
sempre do nunca adormecido ao colo, fechando o dentro impossível de apanhar,
barco escalando a montanha, vale da cordilheira vê, olha, toca, ouve a semente
que se despede da folhagem na altura.
A
face ficou-te gume de faca e a lágrima era água de um lado e sal do outro. A
cara virou o perfil para o perfil e ficou borrão estampado, tu a contares-me a
terra onde fizeram a barragem: uma velhinha aos quarenta anos, as casas sem chaminé,
sem janelas e a tristeza e a miséria das crianças. Sem pão, sem ar, sem luz.
Escuro quadrado a porta é janela e chaminé. Uma electricidade que passa por
cima e não se colhe porque não é um jeito que a apanha, é um dinheiro e ali o desconhecem.
A lama do caminho é funda, não se pode pousar o pé, enterra-se. E nem a cebola
germinou. A fome parou os olhares que murchos meditam. Conheço a fome. Conheço
o silêncio, os olhos que ocupam a casa inteira. O pânico perante o movimento. A
dor do ligeiro mexer. É a morte pairando a ceifa serena em cada dia que passa.
Sem hospital, sem um copo de água quando a chuva acaba de chover. Sem força para
levantar os pés, para os arrastar até não se sabe onde, pois o próximo tão
próximo é longe». In Salette Tavares, Obra Poética, 1957-1971, Biblioteca de Autores
Portugueses, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Lisboa, 1992.
Cortesia
de Aportugueses/JDACT